A semente do ódio
«(…) Obcecado pelo projecto dos sumptuosos festejos, não mostrou o
monarca o menor entusiasmo pela empresa de Ceuta. Pelo contrário, só lhe
descobriu inconvenientes: não havia a grande quantidade de navios necessários ao
transporte de um exército tão numeroso como o requeria a conquista de uma praça
tão fortificada. Além disso, por muito aguerridas que fossem as forças
lusitanas, não seria insensato admitir-se a hipótese de um revés. E as
repercussões de uma derrota poderiam ser tão graves, que originassem a perda do
próprio reino. E era preciso não esquecer que existia nas fronteiras
portuguesas uma Castela, sempre pronta a aproveitar-se dos momentos de fraqueza
para se apoderar do território lusitano, que nunca deixara de cobiçar. Não, não
daria o seu apoio a tal iniciativa. Seria insensatez ir perder nessa aventura
escusada a sólida independência que se conquistara na jornada gloriosa de
Aljubarrota. Os infantes não se deixaram impressionar por este cepticismo;
depreenderam que, no fundo, seu pai o que não estava era para maçadas, e muito
menos arriscando o certo pelo incerto.
Mas, da insistência dos filhos, principalmente de Henrique, resultou,
primeiramente, acordar João I em que, de facto, eles tinham certa razão em
querer ganhar suas esporas de ouro numa luta autêntica e não em combates
simulados. O brio dos rapazes até lhe adulava a vaidade paterna. Contudo,
quanto à empresa de Ceuta, o melhor era nem pensarem nisso. Nesta obstinada
recusa devia pesar o instintivo receio que o mar sempre inspirara ao soberano;
gostava mais de se mover em terra firme. Porque não se intentava, de
preferência, a conquista de Granada,
para a qual não era precisa uma frota? Com este alvitre, pretendia
apenas despistar seu filho Henrique, embora ninguém melhor do
que ele soubesse que o reino mouro de Granada, ao tempo ainda firmemente
estabelecido ao Sul de Castela, era por esta considerado uma futura conquista
sua, e que, se os portugueses se intrometessem nesse assunto, arriscar-se-iam a
reacender a guerra com os castelhanos. Descrevemos com minúcia como evoluiu o
pensamento do monarca, desde a obstinada oposição à empresa de Ceuta, passando
por várias fases de hesitação e receio, até se sentir empolgado por um
entusiasmo tão ardente como o de seus filhos. E então, tudo mudou, passando ele
à direcção superior da grande iniciativa e emprestando aos preparativos toda a
sua experiência, todo o seu dinamismo e toda a sua astúcia.
Devido à sua índole, digamos, manhosa, seguiu ele o velho rifão
de que o segredo é a alma do negócio e,
assim, foi possível levantar a nação em pé de guerra, sem saber quem iria
atacar. A classe nobre o que queria era combater, pouco lhe importando quem e
onde. Confiava cegamente no seu rei, que tão alto prestígio alcançara nas lutas
pela independência. Sabia-se que Nun'Álvares tomaria a chefia suprema do
exército; não podia haver mais sólida garantia de êxito. Os três filhos mais
velhos do monarca, Duarte, Pedro e Henrique, trabalhavam
como verdadeiros mouros na organização da gigantesca empresa. E toda a gente sabia
que eles eram moços muito atilados e valentes. Houve alarme nos países
estrangeiros e vieram diplomatas das principais cortes da Europa perguntar delicadamente
ao rei João contra quem fazia ele tão grandes preparativos bélicos. A todos
acolheu o monarca com a maior afabilidade e a todos despediu com a declaração solene
de que os seus respectivos reinos lhe mereciam o maior respeito e simpatia.
Entretanto, o próprio rei mandava espalhar os boatos mais contraditórios: umas vezes,
que se ia defender a Terra Santa, outras atacar a Sicília, outras ainda, a
Holanda, para castigar uns actos de pirataria cometidos por aventureiros dos Países
Baixos. Nunca se falava, porém, de Ceuta, e Ceuta dormia descansada.
E um dia que uma indiscrição revelou que era contra essa praça que se organizava
a poderosa expedição, ninguém o acreditou.
A 10 de Julho de 1415, o infante Henrique assomou à Barra do Tejo, seguido da
numerosa esquadra que, com tanta diligência, organizara no Porto. Pedro
dirigiu-se festivamente ao seu encontro, com a que por seu turno preparara nos
estaleiros de Lisboa. Podemos imaginar a alegria com que se teriam abraçado os
dois irmãos, ao verem assim reunida aquela enorme armada, toda pintadinha de
fresco, flâmulas tremulando ao vento, velas pandas muito brancas de pano
novo, que representava o primeiro grande passo bem visível para consecução
dos seus sonhos. Mas, ao desembarcarem no Restelo, esperavam-nos mensageiros
com novas muito tristes. A corte retirara bruscamente para Odivelas, depois de
primeiro se ter acolhido a Sacavém, a fim de fugir à peste que lavrava em
Lisboa. Em Odivelas, porém, a rainha começara a sentir-se muito doente. Os
dois infantes partiram a galope, com o coração oprimido por maus pressentimentos.
Era verdade: D. Filipa de Lencastre achava-se gravemente enferma, com todos os sintomas
da epidemia que, por essa época, dizimava meia Lisboa. Decorreram alguns
dias de sombria ansiedade. A enferma conhecia perfeitamente o seu estado e aceitava-o
com resignação. Vendo as aias em prantos, dizia-lhes: - Amigas, não deveis chorar. Ao marido, que não podia ocultar a sua
consternação, confiava o seu maior desejo: - Deus me dê vida que chegue ao tempo de vossa partida, e que façais
vossos filhos cavaleiros diante de mim, com espadas que eu lhes darei e com a
minha bênção». In Mário Domingues, O Regente Pedro, Príncipe Europeu, Empresa Nacional
de Publicidade, Colecção de História de Portugal, nº 7, Lisboa, 1964.
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