A Alcarria
«(…) O viajante distrai-se por uns instantes e tira, da estante, o primeiro
livro que lhe vem à mão: a Historia de
Galicia, de Manuel Murguía, encadernado com cartonado vermelho já
esvaído pelo tempo. Não precisa dele para nada; na realidade, pega nele sem
reparar. - É engraçado, este livro..., é um livro cheio de paciência. O viajante
está meio adormecido e dá um par de cabeçadas enquanto passa as folhas. Acorda
de novo totalmente, quando lê por baixo duma ilustração: cromlech que existe em
Pontes de García Rodríguez. Devolve-o ao seu lugar e pensa que, realmente, tem
os livros muito mal ordenados. A
Historia de Galicia fica entre uma Fisiología
e Higiene, do liceu, e o The
sun also rises, de Hemingway. O viajante volta para diante do mapa. -
As cidades, passarei à beira delas, como os bufarinheiros e os ciganos, como o
javali e o gato montês. Coça uma sobrancelha e franze a testa. O viajante não
está muito convencido. - Ou não, não passarei à beira. As cidades têm de ser
atravessadas, a meio da tarde, quando as meninas saem a passear um bocado,
antes do terço.
O viajante sorri. Tem os olhos semifechados, como de estar a sonhar. -
Bem, logo veremos. Fica um bocado em silêncio, a pensar muito confuso, muito
precipitadamente. Já é muito tarde. - Que loucura! O viajante, que se cansa de
repente, como um pássaro ferido, pensa, afinal, que já só falta começar, que
talvez esteja a dar muitas voltas à cabeça por uma viagem que se pretende fazer
a eito, um pouco como o fogo numa eira: ao
deus-dará e ao calhas. Da mesma garrafa bebe o último gole. - Não.
Estas contas são outras; o melhor será pegar na mochila e desatar a andar. Despe-se,
abre o cobertor de pêlo, apaga a luz e começa a dormir sobre a chaise-longue forrada de cretone. Lá
fora ouve-se o distante bater do chuço no passeio. Pelas frestas da persiana
infiltra-se um fiozinho de claridade. Passam lentos, entumecidos, os carros dos
primeiros trapeiros. O viajante adormeceu à hora de nascer o dia como um pinto
que sai, um pouco envergonhadamente, da derrotada e morna casca.
De Guadalajara, o viajante sai a pé pela estrada principal de Saragoça,
ao lado do rio. É meio-dia, e um sol impiedoso cai, a pique, sobre o caminho. O
viajante avança pela berma, sobre a terra; o asfalto é duro e quente, e estraga
os pés. À saída da cidade o viajante passa por um restaurante ao ar livre que
tem um nome sugestivo, cheio de ressonâncias; por um restaurante ao ar livre
que se chama Los Misterios de Tânger. Primeiro entrou numa loja e
comprou uns tomates. - Dava-me três
quartos de tomates? - Hã?
A vendedora é surda que nem uma porta. - Dava-me
três quartos de tomates? A vendedora nem se mexe; parece uma vendedora
mergulhada em profundas cavilações. - Estão verdes. - Não faz mal; são para
salada. Hã? - Tanto faz! A
vendedora pensa, provavelmente, que o seu dever é não aviar tomates verdes. - O senhor vai a Saragoça, por acaso,
cumprir uma promessa? - Não senhora. - Hã? - Que não senhora! - Pois antes iam muitos a Saragoça;
também levavam a bagagem ao dependuro. - Dantes, sim, senhora. Dava-me três quartos de tomates? O
viajante não consegue gritar mais alto do que aquilo. Tem a garganta seca;
teria dado cinco pesetas por um tomate. A porta da loja está cheia de crianças
que olham para o viajante; de crianças de todo o tipo de cabelos, de todos os
tamanhos; de crianças que não falam, que não se mexem, que olham fixamente,
como os gatos, sem pestanejar. Uma criança ruiva, com a cara cheia de sardas,
avisa o viajante: - É surda. - Estou a ver, meu filho. A criança sorri. - O senhor vai a Saragoça, em promessa?
- Não, meu querubim; não vou a Saragoça. Tu
sabes onde poderei encontrar três quartos de tomates? - Sim, senhor;
venha comigo». In Camilo José Cela, Vagabundo al Servício de España, 1948, Vagabundo
ao Serviço de Espanha, Edições ASA, Porto, 1995, ISBN 972-41-1607-7.
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