terça-feira, 9 de setembro de 2014

Vagabundo ao Serviço de Espanha. Camilo Cela. «Dava-me três quartos de tomates? - Hã? A vendedora é surda que nem uma porta. - Dava-me três quartos de tomates? A vendedora nem se mexe; parece uma vendedora mergulhada em profundas cavilações. - Estão verdes…»

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A Alcarria
«(…) O viajante distrai-se por uns instantes e tira, da estante, o primeiro livro que lhe vem à mão: a Historia de Galicia, de Manuel Murguía, encadernado com cartonado vermelho já esvaído pelo tempo. Não precisa dele para nada; na realidade, pega nele sem reparar. - É engraçado, este livro..., é um livro cheio de paciência. O viajante está meio adormecido e dá um par de cabeçadas enquanto passa as folhas. Acorda de novo totalmente, quando lê por baixo duma ilustração: cromlech que existe em Pontes de García Rodríguez. Devolve-o ao seu lugar e pensa que, realmente, tem os livros muito mal ordenados. A Historia de Galicia fica entre uma Fisiología e Higiene, do liceu, e o The sun also rises, de Hemingway. O viajante volta para diante do mapa. - As cidades, passarei à beira delas, como os bufarinheiros e os ciganos, como o javali e o gato montês. Coça uma sobrancelha e franze a testa. O viajante não está muito convencido. - Ou não, não passarei à beira. As cidades têm de ser atravessadas, a meio da tarde, quando as meninas saem a passear um bocado, antes do terço.
O viajante sorri. Tem os olhos semifechados, como de estar a sonhar. - Bem, logo veremos. Fica um bocado em silêncio, a pensar muito confuso, muito precipitadamente. Já é muito tarde. - Que loucura! O viajante, que se cansa de repente, como um pássaro ferido, pensa, afinal, que já só falta começar, que talvez esteja a dar muitas voltas à cabeça por uma viagem que se pretende fazer a eito, um pouco como o fogo numa eira: ao deus-dará e ao calhas. Da mesma garrafa bebe o último gole. - Não. Estas contas são outras; o melhor será pegar na mochila e desatar a andar. Despe-se, abre o cobertor de pêlo, apaga a luz e começa a dormir sobre a chaise-longue forrada de cretone. Lá fora ouve-se o distante bater do chuço no passeio. Pelas frestas da persiana infiltra-se um fiozinho de claridade. Passam lentos, entumecidos, os carros dos primeiros trapeiros. O viajante adormeceu à hora de nascer o dia como um pinto que sai, um pouco envergonhadamente, da derrotada e morna casca.
De Guadalajara, o viajante sai a pé pela estrada principal de Saragoça, ao lado do rio. É meio-dia, e um sol impiedoso cai, a pique, sobre o caminho. O viajante avança pela berma, sobre a terra; o asfalto é duro e quente, e estraga os pés. À saída da cidade o viajante passa por um restaurante ao ar livre que tem um nome sugestivo, cheio de ressonâncias; por um restaurante ao ar livre que se chama Los Misterios de Tânger. Primeiro entrou numa loja e comprou uns tomates. - Dava-me três quartos de tomates? - ? A vendedora é surda que nem uma porta. - Dava-me três quartos de tomates? A vendedora nem se mexe; parece uma vendedora mergulhada em profundas cavilações. - Estão verdes. - Não faz mal; são para salada. ? - Tanto faz! A vendedora pensa, provavelmente, que o seu dever é não aviar tomates verdes. - O senhor vai a Saragoça, por acaso, cumprir uma promessa? - Não senhora. - ? - Que não senhora! - Pois antes iam muitos a Saragoça; também levavam a bagagem ao dependuro. - Dantes, sim, senhora. Dava-me três quartos de tomates? O viajante não consegue gritar mais alto do que aquilo. Tem a garganta seca; teria dado cinco pesetas por um tomate. A porta da loja está cheia de crianças que olham para o viajante; de crianças de todo o tipo de cabelos, de todos os tamanhos; de crianças que não falam, que não se mexem, que olham fixamente, como os gatos, sem pestanejar. Uma criança ruiva, com a cara cheia de sardas, avisa o viajante: - É surda. - Estou a ver, meu filho. A criança sorri. - O senhor vai a Saragoça, em promessa? - Não, meu querubim; não vou a Saragoça. Tu sabes onde poderei encontrar três quartos de tomates? - Sim, senhor; venha comigo». In Camilo José Cela, Vagabundo al Servício de España, 1948, Vagabundo ao Serviço de Espanha, Edições ASA, Porto, 1995, ISBN 972-41-1607-7.

Cortesia de ASA/JDACT