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Passe, por isso, em julgado, que com a crise mística das Cruzadas, a Europa
procura restabelecer o equilíbrio na sua vida económica, operando-se então um
profundo movimento político e social com base na translação dos valores
económicos, daí resultando a subversão da riqueza imobiliária, representada
pelos domínios senhoriais, e a criação de novo expoente económico: o metal
amoedado e a letra de câmbio. O dinheiro
domina o ritmo vital da idade e nascer. Novos horizontes se abrem ao homem; a
uma nova conformação vai, por sua vez, obedecer a ordem social afirmei no meu
ensaio sobre a Civilização Burguesa. E
assim foi de facto.
Preparada
nesse imenso crisol que e Idade Média foi, a Burguesia, que o comércio e a indústria, a política
financeira dos judeus e a decadência da aristocracia fundiária e militar,
elevara ao primeiro plano da vida civil; ia dirigir os destinos da Europa até aos
nossos dias, e ia, fundindo os seus interesses com a essência da Civilização
Cristã, escrever toda a história universal com a quilha das naus, a palavra dos
missionários, as alabardas dos tércios, os dogmas da autoridade do Estado, as
liberdades da Razão e a epopeia incendiária da Revolução, ia escrever, acentuo de
novo, os fastos da história contemporânea, com a sua vontade revolucionária,
porque, servindo os interesses da Civilização, a intervenção da Burguesia como classe
organizada na vida social marca na Europa a maior revolução depois do
cristianismo e da constituição hierárquica da Igreja. Agora quero eu frisar um estranho
paradoxo histórico. Particularista a civilização aristocrática da Idade Média
não concebeu um ideal que possamos designar como nacional. Teve outros, decerto,
o mais alto dos quais foi inspirado pelo fervor religioso. Mas basta considerar
a pulverização da soberania política, o estádio de conglomeração episódica que
formava a rede política do feudalismo, para podermos definir a Europa cristã
como um conjunto amorfo de soberanias pessoais, uma comunidade aristocrática
dominada pela autoridade temporal e espiritual do papado.
Duma
maneira só, verdadeira Respublica Christiano, na linguagem dos
teólogos e dos jurisconsultos, na qual a soberania régia e o poder episcopal
dos bispos, na sociedade civil e na eclesiástica, em princípio, se reconheciam
equiparados perante a suprema autoridade do Vigário de Cristo. O papa encarnava
a noção muçulmana de Califa. O papa era a cúpula da Igreja no espiritual e no
temporal, fórmula percursora do super-estado que os idealistas demandam com afã
no horizonte nebuloso. Como aquele assegurava
a unidade religiosa e proclamava a guerra de Deus contra os inimigos do seu
nome. A Idade Média tendia para a Teocracia e foi a Revolução Burguesa que a
destruiu com o seu conceito de nação e a formação do Estado Moderno. A história
surpreende na obtenção pela Burguesia do poder económico e na sua crescente
hegemonia política um duplo e contraditório efeito. Por um lado, enquanto
definha a exploração da terra, fenómeno que em Portugal já se começa a sentir a
partir de Afonso IV, sendo impotentes as leis fernandinas (Leis
das Sesmarias) para debelar a crise, acentua-se e progride o
intercâmbio comercial europeu e, em especial, o que com o Próximo Oriente
mantinham depois das Cruzadas as armadas das poderosas Repúblicas marítimas
italianas. Daqui resulta uma tendência cosmopolita mais que nenhuma outra
capital na explicação da história portuguesa». In Pedro Veiga, A Hora Universal
dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.
Cortesia
de T.Sequeira/JDACT