quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Sete Cartas a um Jovem Filósofo. Obras de Agostinho da Silva. «Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta ser um filósofo, não no sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de acordo…»

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As Cartas
«Conhecemos tão pouco da vida, do mecanismo complexo que deve ser este do mundo que, segundo me parece, o decidir-se não tem grande valor, senão no que respeita à estima que poderemos manter por nós próprios, à confiança que talvez seja absurda, mas que em todo o caso nos permite o viver. Creio que, sejam quais forem as circunstâncias, tanto faz decidir-se depois de ter pensado bem um ponto como decidir-se atirando uma moeda ao ar; meditamos gravemente, pesamos todos os elementos, depois fazemos exactamente o que faria o homem que tendo visto apenas a milésima parte de um milímetro do dente de uma roda de engrenagem tivesse opiniões firmes sobre o género de papel ou de bolacha fabricada pela máquina que não a percebe no seu conjunto. Só por um extraordinário acaso se poderá acertar; temos todas as possibilidades, caro Amigo, de tomar sempre uma decisão errada; a sorte da moeda ainda deve talvez ser a melhor, porque, pelo menos, suprime do sistema, já complexo, um elemento que pode perturbar: o da nossa vontade.
A sua decisão de se dedicar à filosofia repousa, pelo que me diz e pelo que eu conheço de si, no entusiasmo que lhe despertam as leituras dos filósofos, no interesse que têm para o meu Amigo todos os grandes problemas filosóficos e no gosto que teria em apresentar um dia uma congeminação sólida, sem falhas, sobre a estrutura do mundo, sobre o sentido da vida. O não ter posto qualquer espécie de preocupação material, o não ter pensado logo, como quase todos os outros, nas possibilidades que haveria para si de se empregar no fim do curso, não lhe deve ter deixado de aparecer como um bom gosto moral, porque o sei bem sensível em tais questões. Como esta nossa conversa de hoje tem fatalmente de seguir um pouco o curso errante de outras nossas conversas, porque, como já teve ocasião de me dizer, não possuo muito o talento da construção lógica, vou dizer-lhe o que penso deste ponto, ou, pelo menos, de uma parte dele. Não sei por que motivo o meu Amigo põe de lado tão ligeiramente os interesses materiais: não ignora decerto que há países em que a profissão de filósofo, de filósofo de ensino, não dá nenhuma espécie de compensação material: é um trabalho para vegetar, não realmente para viver. Você tenciona, pelo que depreendo da sua carta ser um filósofo, não no sentido de que exporá doutrinas alheias ou construirá uma sua doutrina e se dará satisfeito com tudo isso, mas no sentido de que tentará pôr a sua vida de acordo com a sua filosofia, à maneira de certos gregos e de quase todos os indús. Se isto é assim, o facto de se não importar muito com a parte material da vida, de ter, como se diz, desprezo pelo dinheiro, é já a consequência de uma filosofia; se fosse a sua filosofia a estar de acordo com a vida, você construiria por exemplo uma filosofia de miséria sobre uma vida de miséria; mas, como é o contrário, você sobre uma filosofia de desprezo dos bens materiais constrói uma vida em que esse desprezo se manifesta amplamente; mas desprezo ou repulsão? Um Séneca, como você talvez já saiba, teve o desprezo das riquezas, mas foi banqueiro; um santo tem o desprezo da riqueza e nunca é banqueiro: são duas atitudes diferentes. Você naturalmente vai pela primeira: se a miséria vier, paciência, se vier a riqueza, paciência também». In Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, 1943, colecção Obras de Agostinho da Silva, Ulmeiro, 1990, ISBN 972-706-217-2.

Cortesia de Ulmeiro/JDACT