Com
a devida vénia a Guilherme de Oliveira
À
memória da minha querida Alice
«(…)
Ali estava na minha frente a criança travessa e amiga de guloseimas que espera
que os grandes, lhe dêem bombons.
Vista de perto parecia uma figurinha de cera, pequenina, quebradiça e lábil. A
vida dela estava toda nos belos e grandes olhos e na voz estranha, plástica e
quente. O encanto dos olhos e a doçura da voz encobriam todo o seu ser; nada
mais interessava conhecer-lhe; era toda espiritualidade contida num corpo que
seria belo mas para cuja apreciação não havia lugar porque, o brilho do seu
espírito e a candura da sua alma nos guiavam por caminhos de beleza e de
bondade. O que me surpreendeu logo, no início das nossas relações, foi o colorido
magoado e triste da sua alegria decerto comunicativa e o grau de integração afectiva
do seu carácter rico de qualidades e de harmonias. Falava como uma criança, sem
preconceitos, clara, directa e ingénua; mas o conteúdo psicológico das suas
palavras simples e expontâneas era rico de ideias e de beleza. Tinha alma de
criança, coração de mulher e espírito de artista. Por isso a sua alegria era
franca, consciente e perturbada: quando a criança ria, a mulher reflectia e a
artista sofria. O conjunto destas ressonâncias interiores tão diferentes tinha
um colorido inocente, quer ela risse, quer chorasse, porque também a sua tristeza
era salpicada de tons leves que se destacavam da camada infantil da sua
personalidade. Quem a olhasse distraído das profundezas do seu ser diria que
ela era azougada e feliz. Porém os que, como eu, a observassem com interesse e
ternura, depressa reconheciam que a sua vida interior tinha recessos torturados
por desconsolos profundos e por anseios insatisfeitos. A razão destas desarmonias
estava na diferença constitucional dos seus pendores que ora a solicitavam para
um caminho, ora para outro.
Como
menina queria receber carinhos; como senhora ansiava por amor; e como artista
sentia as dores pungentes da vida e era sensível a beleza que procurava e
criava. Não podia ficar satisfeita só com carinho, amor ou beleza. Para a realização
completa de todas as aspirações da sua mentalidade superior e polimorfa, ela precisava
de carinho, de amor e de beleza e tinha que ser sempre menina, senhora e
artista. Criança, corria atrás de quimeras douradas, olhava atónita os homens e
as coisas, colhia flores, corria pelos caminhos, brincava com a lua e pedia as
estrelas, e queria ser amimada e embalada ao som de canções e de histórias
maravilhosas. Todas as coisas do mundo a surpreendiam, a alegravam,
atemorizavam ou lhe causavam uma admiração pasmada que se exprimia nos seus
belos e grandes olhos muito abertos e parados de espanto. As pequenas como as
grandes contrariedades faziam-lhe correr lágrimas grossas e silenciosas e
levavam-na a refugiar-se nos braços das pessoas grandes que a amassem ou, na falta destas, no silêncio do seu
quarto onde soluçava no desespero da solidão e da mágoa. Tinha que ser amada e
acarinhada como uma criança, a minha pobre Alice!
Mas
se o que existia nela de criança exigia ternura e satisfação de pequeninas
vontades, a senhora erguia-se de entre a personalidade infantil e mostrava-se
com todo o brilho e grandeza da maturação perfeita. Então era vê-la calma,
corajosa, senhora de si, a resolver os problemas da vida, a amparar
amorosamente os que precisavam do seu carinho, do seu amor ou do seu auxílio.
De súbito tudo se transformava nela, e era ela agora que animava, que acarinhava
os grandes, despertando neles a
camada infantil que existe em todos os adultos, só velada pela educação e pela
cultura. Ninguém se podia furtar ao consolo de ser criança sob a acção da sua
presença apaixonante e carinhosa». In Guilherme de Oliveira, Memoriam, Alice
Freire Falcão Oliveira, 1921-1947, Tipografia Atlântida, Coimbra, 1949.
Cortesia
de T.Atlântida/JDACT