segunda-feira, 29 de setembro de 2014

In Memoriam. Alice F. Falcão Oliveira. Guilherme Oliveira. «Como menina queria receber carinhos; como senhora ansiava por amor; e como artista sentia as dores pungentes da vida e era sensível a beleza que procurava e criava. Não podia ficar satisfeita só com carinho, amor ou beleza»

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Com a devida vénia a Guilherme de Oliveira

À memória da minha querida Alice
«(…) Ali estava na minha frente a criança travessa e amiga de guloseimas que espera que os grandes, lhe dêem bombons. Vista de perto parecia uma figurinha de cera, pequenina, quebradiça e lábil. A vida dela estava toda nos belos e grandes olhos e na voz estranha, plástica e quente. O encanto dos olhos e a doçura da voz encobriam todo o seu ser; nada mais interessava conhecer-lhe; era toda espiritualidade contida num corpo que seria belo mas para cuja apreciação não havia lugar porque, o brilho do seu espírito e a candura da sua alma nos guiavam por caminhos de beleza e de bondade. O que me surpreendeu logo, no início das nossas relações, foi o colorido magoado e triste da sua alegria decerto comunicativa e o grau de integração afectiva do seu carácter rico de qualidades e de harmonias. Falava como uma criança, sem preconceitos, clara, directa e ingénua; mas o conteúdo psicológico das suas palavras simples e expontâneas era rico de ideias e de beleza. Tinha alma de criança, coração de mulher e espírito de artista. Por isso a sua alegria era franca, consciente e perturbada: quando a criança ria, a mulher reflectia e a artista sofria. O conjunto destas ressonâncias interiores tão diferentes tinha um colorido inocente, quer ela risse, quer chorasse, porque também a sua tristeza era salpicada de tons leves que se destacavam da camada infantil da sua personalidade. Quem a olhasse distraído das profundezas do seu ser diria que ela era azougada e feliz. Porém os que, como eu, a observassem com interesse e ternura, depressa reconheciam que a sua vida interior tinha recessos torturados por desconsolos profundos e por anseios insatisfeitos. A razão destas desarmonias estava na diferença constitucional dos seus pendores que ora a solicitavam para um caminho, ora para outro.
Como menina queria receber carinhos; como senhora ansiava por amor; e como artista sentia as dores pungentes da vida e era sensível a beleza que procurava e criava. Não podia ficar satisfeita só com carinho, amor ou beleza. Para a realização completa de todas as aspirações da sua mentalidade superior e polimorfa, ela precisava de carinho, de amor e de beleza e tinha que ser sempre menina, senhora e artista. Criança, corria atrás de quimeras douradas, olhava atónita os homens e as coisas, colhia flores, corria pelos caminhos, brincava com a lua e pedia as estrelas, e queria ser amimada e embalada ao som de canções e de histórias maravilhosas. Todas as coisas do mundo a surpreendiam, a alegravam, atemorizavam ou lhe causavam uma admiração pasmada que se exprimia nos seus belos e grandes olhos muito abertos e parados de espanto. As pequenas como as grandes contrariedades faziam-lhe correr lágrimas grossas e silenciosas e levavam-na a refugiar-se nos braços das pessoas grandes que a amassem ou, na falta destas, no silêncio do seu quarto onde soluçava no desespero da solidão e da mágoa. Tinha que ser amada e acarinhada como uma criança, a minha pobre Alice!
Mas se o que existia nela de criança exigia ternura e satisfação de pequeninas vontades, a senhora erguia-se de entre a personalidade infantil e mostrava-se com todo o brilho e grandeza da maturação perfeita. Então era vê-la calma, corajosa, senhora de si, a resolver os problemas da vida, a amparar amorosamente os que precisavam do seu carinho, do seu amor ou do seu auxílio. De súbito tudo se transformava nela, e era ela agora que animava, que acarinhava os grandes, despertando neles a camada infantil que existe em todos os adultos, só velada pela educação e pela cultura. Ninguém se podia furtar ao consolo de ser criança sob a acção da sua presença apaixonante e carinhosa». In Guilherme de Oliveira, Memoriam, Alice Freire Falcão Oliveira, 1921-1947, Tipografia Atlântida, Coimbra, 1949.

Cortesia de T.Atlântida/JDACT