domingo, 28 de setembro de 2014

A Hora Universal dos Portugueses. Pedro Veiga. «De pedra solta, pau e colmo era a habitação dos rústicos, poucas resistiriam, por isso, aos vendavais da História, mas o seu tipo manteve-se nos lugares alheios à Civilização, e o arcaico das suas linhas a cada passo nos transporta para o fundo das Idades»

jdact

«(…) Território escasso, mal povoado. Nas fozes dos rios principais: o burgo do Porto, terra altiva de mercadores e mesteirais de foral, e Lisboa, princesa sarracena decaída da antiga glória, até que as naus das descobertas de novo a nimbaram de oiro. Neles e em Coimbra, Braga e Guimarães e Évora e Lamego, cidades antigas por cujas calçadas passaram os ginetes invasores, despertam os primeiros indícios da vida civil: municipalismo e artesanato. Uma vida urbana incipiente à sombra da Igreja e dos homens de boa linhagem. Em ruelas estreitas, empinadas e disformes, uma multidão anónima mercadeja e trabalha. De madeira ou granito, janelas rotuladas à moirisca ou de friestas mediévicas, portas em arco; gradeamentos de ferro batido, alpendres e sacadas de colunas, tectos forrados em caixotões, eis as habitações coevas do homem medieval. Aqui e acolá um terreiro espaçoso servia de mercado e praça pública como hoje em dia. Longas fiadas de arcarias serviam de fundo à multidão. Ruas cobertas, cortadas de arcos movimentavam a arquitectura rude. Lajeado irregular calçava as ruelas. Longos panos de muralha esquinados de castelos protegiam a povoação. Ao descer do dia cerravam-se as portas e nos nichos e cruzeiros votiva luz iluminava as obras sacras dos imaginários. O melhor lavor de pedra e os maiores cuidados na fábrica se ofereciam a Deus e pela terra cristã, as casas de devoção eram um grito de Fé, e tantas vezes hospício dos pobres e asilo dos perseguidos da Justiça.
Alinhavam-se as profissões por ruas e, sob os auspícios da Igreja, nasciam no nosso país as corporações dos mesteirais que mais tarde, em tempos de el-Rei João I, seriam poder público. Povoada de castelos era a terra de Portugal. Serviam de paço aos nobres senhores dos contos e honras mas os mais numerosos demarcavam a raia e sucediam-se em linhas sobrepostas por essas colinas além, à medida que o montante e a besta retomavam para e cruz as terras estremenhas. Eram vigias e aos monges militares cabia, em regra, sua defesa. Serviam também de refúgio aos servos e vilões quando algara moirisca pela Primavera e Estio, como furacão devassador, rompia pelas chácaras e terras de lavradio.
De pedra solta, pau e colmo era a habitação dos rústicos, poucas resistiriam, por isso, aos vendavais da História, mas o seu tipo manteve-se nos lugares alheios à Civilização, e o arcaico das suas linhas a cada passo nos transporta para o fundo das Idades. Do que da terra brotava pelo humano esforço da grei, vivia esta sociedade rudimentar, afeita ao rude esforço da relha e ao bravio lidar das armas. Daí essa nossa nobreza antiga apegada ao torrão, lhana e vigorosa, que na própria terra que recebeu de mercê das mãos dos seus Reis, mergulhava a raiz dos seus privilégios de classe e da sua ascendência social. Aqui, a Nobreza desempenhou uma função social enquanto foi para o camponês e abegão o senhor que o defendia da usura e da depredação e, nas suas querelas, simbolizava o princípio da autoridade Quem arredar de si na exegese da História a análise dos factos económicos, pode ser um político que quer encontrar na lição dos tempos idos um índice de valores normativos jamais um homem isento de emoções passionais. Faz da História um acto de apostolado e Fé, não um cosmorama das realidades humanas. Um sectário, nunca um humanista.
Na Europa o movimento das cruzadas obedece a uma corrente proselítica, a um imenso arrebol de Fé? Decerto. Mas obedeceu também a outras causas, preparadas subterraneamente nas camadas da infra-estrutura económica do Ocidente. Era oportuno alongar-nos algo sobre a economia europeia contemporânea das Cruzadas e do chômage que afligia a aristocracia militar. Isso afastar-nos-ia, porém, da directriz tracejada: o momento único na História em que todas as forças da civilização se concentraram no homem português que singrava os mares, descobria os continentes, combatia os Turcos, propagava a Fé, detinha os segredos dos oceanos e os grossos cabedais do tráfico oriental, abordava as longínquas paragens do Extremo Oriente e se afoitava, seguro, a circumnavegar o globo». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.

Cortesia de T.Sequeira/JDACT