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Território escasso, mal povoado. Nas fozes dos rios principais: o burgo do
Porto, terra altiva de mercadores e mesteirais de foral, e Lisboa, princesa
sarracena decaída da antiga glória, até que as naus das descobertas de novo a
nimbaram de oiro. Neles e em Coimbra, Braga e Guimarães e Évora e Lamego,
cidades antigas por cujas calçadas passaram os ginetes invasores, despertam os
primeiros indícios da vida civil: municipalismo e artesanato. Uma vida urbana
incipiente à sombra da Igreja e dos homens de boa linhagem. Em ruelas
estreitas, empinadas e disformes, uma multidão anónima mercadeja e trabalha. De
madeira ou granito, janelas rotuladas à moirisca ou de friestas mediévicas,
portas em arco; gradeamentos de ferro batido, alpendres e sacadas de colunas,
tectos forrados em caixotões, eis as habitações coevas do homem medieval. Aqui
e acolá um terreiro espaçoso servia de mercado e praça pública como hoje em dia.
Longas fiadas de arcarias serviam de fundo à multidão. Ruas cobertas, cortadas
de arcos movimentavam a arquitectura rude. Lajeado irregular calçava as ruelas.
Longos panos de muralha esquinados de castelos protegiam a povoação. Ao descer
do dia cerravam-se as portas e nos nichos e cruzeiros votiva luz iluminava as
obras sacras dos imaginários. O melhor lavor de pedra e os maiores cuidados na
fábrica se ofereciam a Deus e pela terra cristã, as casas de devoção eram um
grito de Fé, e tantas vezes hospício dos pobres e asilo dos perseguidos da Justiça.
Alinhavam-se
as profissões por ruas e, sob os auspícios da Igreja, nasciam no nosso país as
corporações dos mesteirais que mais tarde, em tempos de el-Rei João I, seriam
poder público. Povoada de castelos era a terra de Portugal. Serviam de paço aos
nobres senhores dos contos e honras mas os mais numerosos demarcavam a raia e
sucediam-se em linhas sobrepostas por essas colinas além, à medida que o
montante e a besta retomavam para e cruz as terras estremenhas. Eram vigias e
aos monges militares cabia, em regra, sua defesa. Serviam também de refúgio aos
servos e vilões quando algara moirisca pela Primavera e Estio, como furacão
devassador, rompia pelas chácaras e terras de lavradio.
De
pedra solta, pau e colmo era a habitação dos rústicos, poucas resistiriam, por
isso, aos vendavais da História, mas o seu tipo manteve-se nos lugares alheios
à Civilização, e o arcaico das suas linhas a cada passo nos transporta para o
fundo das Idades. Do que da terra brotava pelo humano esforço da grei, vivia
esta sociedade rudimentar, afeita ao rude esforço da relha e ao bravio lidar
das armas. Daí essa nossa nobreza antiga apegada ao torrão, lhana e vigorosa,
que na própria terra que recebeu de mercê das mãos dos seus Reis, mergulhava a raiz
dos seus privilégios de classe e da sua ascendência social. Aqui, a Nobreza
desempenhou uma função social enquanto foi para o camponês e abegão o senhor
que o defendia da usura e da depredação e, nas suas querelas, simbolizava o
princípio da autoridade Quem arredar de si na exegese da História a análise dos
factos económicos, pode ser um político que quer encontrar na lição dos tempos
idos um índice de valores normativos jamais um homem isento de emoções
passionais. Faz da História um acto de apostolado e Fé, não um cosmorama das
realidades humanas. Um sectário, nunca um humanista.
Na
Europa o movimento das cruzadas obedece a uma corrente proselítica, a um imenso arrebol de Fé? Decerto.
Mas obedeceu também a outras causas, preparadas subterraneamente nas camadas da
infra-estrutura económica do Ocidente. Era oportuno alongar-nos algo sobre a
economia europeia contemporânea das Cruzadas e do chômage que afligia a aristocracia militar. Isso afastar-nos-ia,
porém, da directriz tracejada: o momento único na História em que todas as
forças da civilização se concentraram no homem português que singrava os mares,
descobria os continentes, combatia os Turcos, propagava a Fé, detinha os
segredos dos oceanos e os grossos cabedais do tráfico oriental, abordava as longínquas
paragens do Extremo Oriente e se afoitava, seguro, a circumnavegar o globo». In
Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu,
Porto, 1948.
Cortesia
de T.Sequeira/JDACT