sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Breve História da Censura Literária em Portugal. Graça Rodrigues. «Os professores da Universidade de Coimbra encontraram-se dentro dum verdadeiro espartilho intelectual. Os Estatutos da Universidade (Coimbra, 1654), não só declaravam a matéria e o texto a ler em cada cadeira, mas obrigavam os professores a fazer ‘repetições’ anuais…»

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Os Arquétipos. A Censura Inquisitorial
«(…) A terceira destas advertências é uma exortação à abstenção da leitura de livros em que há desonestidades ou amores profanos. Em consequência, a primeira edição de Os Lusíadas que, em 1572, fr. Bartolomeu Ferreira deixara que se publicassem, apenas precavendo os leitores contra os erros teológicos contidos na alegoria dos deuses pagãos e os perigos de se confundirem os falsos deuses com o verdadeiro, sai em 1584 muito emendada. Com efeito, a 2.ª edição de Os Lusíadas, publicada em 1584 ainda sob a vigilância de fr. Bartolomeu Ferreira, vem à luz emendada e mutilada não só no que respeita às passagens mitológicas, mas também noutras passagens, como as das ilhas dos Amores, que são consideradas sensuais e portanto desonestas. Um novo índice romano apareceu em 1597. Logo a 12 de Dezembro do mesmo ano este índice foi impresso em Lisboa, precedido duma ordem do inquisidor-geral, o bispo de Elvas, António Matos Noronha, que lhe dava força de lei em Portugal. Este índice romano dava instruções divididas em três secções:
  • Livros proibidos (6 regras); 
  • Livros a serem expurgados (5 regras); 
  • Impressão de livros (7 regras).
Estas regras não eram totalmente novas para os censores portugueses, que no exercício da sua actividade censória tinham adquirido uma experiência notável. Mas trazia o benefício aos censores portugueses de verem sancionadas pelo papa as regras que há muito vinham sendo aplicadas em Portugal. De 1547 a 1597, Portugal foi o país católico mais estritamente protegido contra a heresia e a imoralidade literária. A partir de 1551, Portugal ocupou uma posição de avant-garde entre os países católicos no respeitante à censura. Um novo índice português só apareceu em 1624. É um índice muito pormenorizado e completo, onde se compilam todos os índices anteriores. Bem pode ser denominado o Livro de Oiro da Censura Portuguesa. Este índice conservou-se em vigor até ser revogado pelo marquês de Pombal em 1768. Foi organizado pelo jesuíta padre Baltazar Álvares e está dividido em três partes:
  • O índice romano; 
  • O índice para Portugal (isto é, os livros proibidos para Portugal para além dos indicados no índice romano); 
  • O índice expurgatório das passagens a riscar nas obras autorizadas condicionalmente.
De acordo com a regra geral do índice de 1581, o índice de 1624 apresentava uma lista de autos proibidos ou expurgados. Os nomes dos autores populares teatrais António Ribeiro Chiado, Afonso Álvares, fr. António Lisboa, Baltazar Dias, Francisco Vaz Guimarães aparecem pela primeira vez no Index, mas certamente que os seus autos corriam já expurgados. Também aparecem incluídas, pela primeira vez, as comédias clássicas de Sá de Miranda e de António Ferreira. A obra Comédias Famosas, publicada em 1622 sofre numerosos cortes. Outra obra significativa da cultura portuguesa que sofreu inúmeras censuras foi o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. O índice prescreve cortes em nada menos de 70 folios dos 227 da obra. Em que teria ficado o Cancioneiro se as censuras indicadas tivessem sido cumpridas em novas edições?
Não se conhecem outros índices inquisitoriais portugueses posteriores a este. O critério que presidiu à elaboração deste índice manteve-se estável, regulamentado em cada caso pela censura prévia a que tinha de ser submetido cada manuscrito antes de ser impresso. Para as obras em castelhano os censores portugueses tinham os índices espanhóis de 1640, 1700 e 1745, que se apresentavam cada vez mais vastos. A partir de 1624 e até à instituição da Real Mesa Censória, a história da Censura em Portugal não está feita. Mais adiante veremos alguns dos objectos da censura portuguesa na segunda metade do século XVII, resultantes do estudo de alguns manuscritos que se encontravam até agora desconhecidos na Torre do Tombo.
A censura da maior parte do que se tinha escrito nos últimos anos, assim como a proibição dos autores apologistas do livre exame, teve uma incidência muito especial no ensino universitário. Os professores da Universidade de Coimbra encontraram-se dentro dum verdadeiro espartilho intelectual. Assim, os Estatutos da Universidade (Coimbra, 1654), não só declaravam a matéria e o texto a ler em cada cadeira, mas obrigavam os professores a fazer repetições anuais e públicas e a submeterem conclusões à argumentação crítica de três colegas da respectiva Faculdade. O lente, ordenam os Estatutos, disputará e tratará todas as questões necessárias e nunca lerá na cadeira sentenciário particular. Manuscritos da Torre do Tombo contêm numerosas censuras a teses universitárias, levadas a cabo pelos censores fr. Francisco Ribeiro, fr. António Pacheco e António Mártires que, segundo a fórmula oficial, repugnam à nossa Santa Fé e bons costumes. Nestas teses, escritas em latim, são apontados os menores desvios à autoridade consagrada. O mesmo se verifica nas censuras dos sermões». In Graça Almeida Rodrigues, Breve História da Censura Literária em Portugal, Instituto de Cultura Portuguesa, Série Literatura, Biblioteca Breve, Amadora, 1980.

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