terça-feira, 30 de setembro de 2014

Inês de Castro. Da Tragédia ao Melodrama. Nair de Nazaré Soares. «...em saindo dos teus braços, ama, na viva flor da minha idade (ou fosse fado seu, ou estrela minha), cos olhos lhe acendi no peito fogo, fogo, que sempre ardeo, e inda arde agora, na primeira viveza inteiro e puro»

Cortesia de wikipedia

Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) A longa rhesis da Castro em que é manifesta a permeabilidade genológica discursiva do modo dramático com os modos lírico e narrativo, com a intenção de reforçar a mensagem e a ambiência trágica, permite, através de rememorações e visões retrospectivas, introduzir o espectador no assunto da peça e caracterizar a protagonista:

Ó ama, amanheceu-me um alvo dia,
dia do meu descanso. Sofre um pouco
repetir de mais alto a minha história...

O enquadramento histórico-simbólico dos antepassados do Infante, os reis de Portugal de quem é desejado herdeiro, elemento diegético tão característico dos romances de cavalaria, ao gosto da época, introduz de forma alusiva a verdadeira dimensão do conflito entre a Razão de Amor e a Razão de Estado. Assim, a caracterização da Castro surge também, nesta fala, em termos que denunciam a contaminatio com a novela sentimental, ou mesmo a écloga dramática, em que Sannazaro era modelo:

...em saindo dos teus braços,
ama, na viva flor da minha idade
(ou fosse fado seu, ou estrela minha),
cos olhos lhe acendi no peito fogo,
fogo, que sempre ardeo, e inda arde agora,
na primeira viveza inteiro e puro.
[…]
Que fará? Se o encobre, então mais queima.
Descobri-lo não quer, nem lhe é honesto.
Mas quem o fogo guardará no seo?
Quem esconderá amor, que em seus sinais,
apesar da vontade, se descobre?
Nos olhos e no rosto chamejava.
Nos meus olhos os seus o descobriam.
Suspira, e geme, e chora a alma cativa,
forçada da brandura e doce força,
sojeita ao cruel jugo, que pesado
a seu desejo sacodir deseja.
Não pode, não convém: a fúria cresce.
Lavra a doce peçonha nas entranhas.
Os homens foge, foge a luz e o dia.
Só passea, só fala, triste cuida.
Castro na boca, Castro na alma, Castro
em toda parte tem ante si presente.

Um amor na flor da idade, topos literário desde Petrarca, justifica, do ponto de vista poético e do direito natural, os erros da paixão. O ethos de heroína de tragédia clássica desenha-se assim com traços nítidos, nesta rhesis da Castro: além da culpa involuntária, enfatiza-se a sua alta linhagem, que não desmerece a do seu Infante:

Da antiga casa Castro em toda Espanha,
já dantes do real ceptro deste reino
por grande conhecida, inda meu sangue
do real sangue seu tinha grã parte.

Ferreira, ao descurar os dados históricos, confere verosimilhança a este amor primeiro de Inês e Pedro e envolve em lirismo e idealidade a heroína trágica, donna angelicata dos códigos temático-ideológicos stilnuovista e petrarquista. A figura de Inês surge projectada, desde o início, num cenário idílico de toada elegíaca, que faz lembrar o Ovídio mais cenográfico das Heroides. O longo enquadramento descritivo numa situação narrativa, na sua dupla funcionalidade de catálise ornamental e significativa, deixa perceber o conflito: a tragédia de caracteres, que nasce da diversidade de atitudes individuais quanto à legitimidade da morte da jovem Inês ou, o mesmo será dizer, quanto à legitimidade do seu amor». In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT