«O
nome do filósofo cuja vida se extinguiu durante a fuga aos polícias hitlerianos
foi adquirindo uma auréola nos quinze anos que decorreram desde a sua morte,
apesar do carácter esotérico dos seus primeiros trabalhos e do carácter
fragmentário dos últimos. O fascínio pela sua pessoa e oeuvre levam inevitavelmente a uma atracção magnética ou a uma
defesa estremecida. Sob o olhar das suas palavras tudo se transforma como se se
tornasse radioactivo. Mas a sua capacidade de distinguir constantemente novos
aspectos das coisas, não tanto pelo processo que consiste em romper
criticamente as convenções como pelo de relacionar-se com o objecto de acordo
com a sua organização interna como se a convenção nenhum poder tivesse sobre
ele, não pode apreender-se seriamente através do conceito de originalidade.
Nenhum pensamento original desse homem inesgotável se assemelha a algo sem
mistura. O sujeito que de facto acolheu todas as experiências originárias sobre
as quais a actual filosofia oficial se limita a dissertar com eloquência, não
parecia participar dessas experiências. Também ao seu estilo falta, em geral, o
aspecto da espontaneidade e cintilação no sentido tradicional destes conceitos,
e, muito particularmente, a arte da formulação instantânea e definitiva. Não dava
a impressão de ser uma pessoa que conquistasse a verdade criando-a e
pensando-a, antes a citava através do pensamento, como se este fosse um supremo
instrumento no qual a verdade deixara o seu sedimento. Benjamin nada possuía de filósofo
no sentido tradicional e de acordo com os critérios tradicionais. O que caracterizou
as suas descobertas não foi sequer uma disposição viva e orgânica: nenhuma imagem pode errar tão completamente o seu ser
como a metáfora do criador.
A
subjectividade do seu pensamento era exagerada até à caricatura, até à
diferença específica; o momento idiossincrático do seu próprio espírito, o que
era singular nele, o que no processo filosófico tradicional seria o casual, o
efémero e nulo, era um recurso constritivo. A frase de acordo com a qual o conhecimento
individual é o mais universal parece ter sido feita a pensar nele. Se não se
desse o caso de nesta era de radical divergência entre a consciência social e a
científico-natural toda a metáfora física ser profundamente suspeita, poderia
dizer-se que nele operava a energia de uma decomposição atómica intelectual.
Diante da sua insistência dissolvia-se o indissolúvel e Benjamin apoderava-se da
essência das coisas precisamente nos pontos em que o muro da simples
factualidade esconde e defende raivosamente tudo o que é essencial. Falando de
modo esquemático, pode dizer-se que aquilo que o motivava era o impulso para
romper com a lógica que se limita a bordar o particular com o universal ou a
abstrair o universal do individual.
Benjamin queria
compreender a essência sem a destilar com operações automáticas e sem a
contemplar em duvidoso êxtase imediato: adivinhá-la metodicamente, partindo da
configuração de elementos distantes da significatividade. A adivinhação era o modelo
da sua filosofia. A sua suave irresistibilidade vai a par de uma premeditada e
planeada singularidade. A sua irresistibilidade não está no afã de produzir um
efeito mágico, nem na objectividade,
no sentido de uma simples submersão do sujeito em tais climas. Resulta antes de
um rasgo que a especialização e a divisão do espírito, em geral, só permitem na
arte e que, transformado em teoria, se liberta da aparência e adquire uma
incomparável dignidade: a promessa de felicidade. Tudo aquilo que Benjamin
disse e escreveu soa como se o pensamento recolhesse as promessas dos contos e
dos livros infantis em vez de as recusar em nome de uma depreciativa maturidade
de adulto; tão literalmente, que torna até perceptível o pleno cumprimento real
do conhecimento. O que desde o início é fundamentalmente recusado na sua topografia
filosófica é a renúncia.
Falar
com ele era sentirmo-nos como a criança que vislumbra, pelas frestas da porta,
as luzes da árvore de Natal. Mas a luz prometia também, como luz da razão, a própria
verdade e não o seu mero brilho impotente. O pensamento de Benjamin não era uma
criação a partir do nada, mas uma oferta a partir da plenitude; ele queria devolver-nos
a satisfação que a adaptação e a autoconservação impedem de ter, o prazer em
que se articulam os sentidos e o espírito. No seu estudo sobre Proust destaca
como motivação desse artista, a ele ligado por electiva afinidade, a exigência
de felicidade e seria difícil errar se procurássemos aí a origem de uma paixão
a que se devem duas das mais perfeitas traduções realizadas em língua alemã: a
de À l’ombre des jeunes filles en fleur
e de La côte de Guermantes.
Mas tal como em Proust a exigência de felicidade extrai o seu ritmo profundo da
intolerável densidade da novela da desilusão, mortalmente consumada em À la recherche du temps perdu,
assim também a fidelidade de Benjamin à felicidade que lhe é
negada foi paga com uma tristeza de que a história da filosofia possui tão
poucos exemplos como a Utopia de um dia sem nuvens». In Walter
Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, introdução de T. W.
Adorno, Antropos, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1992, ISBN 972-708-177-0.
Cortesia
de Relógio D’Água/JDACT