quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tradução ou Adaptação? Autores Clássicos. A versão de Aquilino Ribeiro. «Um escritor que traduz outro abdica da personalidade, que é o principal timbre, se é escritor a valer, da sua arte. Acontece-lhe como ao alferes que perdeu a bandeira. Mas, repito, eu traduzi D. Quixote com o objectivo didascálico de o estudar»

Cortesia de wikipedia

A tradução de Xenofonte
A Retirada dos Dez Mil e O Príncipe Perfeito
«(…) Assim: A sua pedagogia era morta, inexoravelmente morta. Mas a parte viva, que representa a medula espinal da obra, seja o espírito de que está animado o protagonista, a sua clarividência quanto ao poder das reacções morais, a sua índole magnânima e a forma, em suma, de solucionar os problemas do desentendimento humano, constituem uma lição para os políticos semi-bárbaros dos nossos dias que apenas sabem resolvê-los pela brutalidade. (Xenofonte, 1952)  Na avaliação feita dos princípios norteadores da conduta ética, Aquilino acentua, no prefácio da edição de 1952, a grandeza dum soberano que soube ser clemente com os povos batidos e dominados pelas armas. Salienta, por isso, o contraste com os governantes da actualidade. Assim se poderão compreender estas considerações desiludidas: A verdade insofismável é que, no geral, os senhores que governam o mundo são do pior que tem engendrado, do fim do Renascimento para cá, o ventre podre da política. Eu não os queria para me gerir uma quinta. Tampouco daria licença que fossem conselheiros dos meus filhos. A que letras e ciências comprovadas pediram a sua disciplina mental, subsidiária da arte de governar? Ouviram alguma vez falar da República de Platão, desta Kirou Paideia ou da Lakedaimonion Politeia de Xenofonte? (Xenofonte, 1952) Ao finalizar a apresentação da obra, Aquilino questiona-se ainda sobre a missão do escritor e avalia o empreendimento realizado. Reconhece ter valido a pena retirar aquele livro do limbo, sendo por isso o trabalho de tradução bem mais do que um entretenimento benigno. Dada a sua actualidade para os tempos modernos, não podia o livro permanecer fossilizado sob a lava literária de vinte séculos. Por isso se dedicou a esta empresa, embora com a sensação de que o escritor português tem sempre diante de si duas tarefas: uma a de pensar como todo e qualquer artífice das letras do orbe civilizado; outra a de ir preparando a forma, dar curso ao seu estilo, o que exige tanto esforço, pelo menos, como ao padeiro estender em porções a massa levedada.

A tradução de Cervantes: Dom Quixote e Novelas Exemplares
Ao contrário dos contextos circunstanciais que ditaram os anteriores investimentos, a tradução de Dom Quixote de la Mancha e das Novelas Exemplares, de Miguel Cervantes, exigiu de Aquilino prolongado investimento. No Dom Quixote, já vertido anteriormente para a língua portuguesa, enfrentou a tarefa de recriar uma obra-prima de outra época, introduzindo uma revitalização idiomática e as suas inconfundíveis marcas estilísticas. Nas doze narrativas da colectânea cervantina, investiu na primeira tradução portuguesa integral das novelas. Ao enfrentar este desafio, o tradutor chega a questionar se valeria a pena o empreendimento; mais, se tinha o direito de verter para português um texto castelhano, quando a Espanha estava tão perto de nós por bifurcação do mesmo tronco. Contudo, os idiomas tinham-se afastado tanto que reajustar reciprocamente as obras da literatura, tendo em conta o temperamento e índole respectiva, eis a tarefa do tradutor. O autor explica as razões que o levaram a arcar com esse empreendimento: Para melhor me convencer de que o meu pensamento não era uma desmesurada e tonta fantasia, tendo-se-me oferecido o ensejo de traduzir D. Quixote de la Mancha, pus-me a fazê-lo com minuciosa atenção, desfiando-o frase por frase, pensamento por pensamento, e, em seguida, as Novelas Exemplares. O melhor processo de me integrar nos segredos estruturais do autor, reconhecer-lhe os defeitos, sentir como eram delineadas as personagens, apreendendo a sua irradiação metaplástica, seria este. Assim, filtrei pela minha pena tudo o que passara pelo cérebro de Cervantes, mas é claro, com o parti pris dum analista. Suponhamos que demoli um edifício e tratei de o reconstruir nas suas linhas, alçado e formas, pesando pedra por pedra na palma das mãos. E, isto feito, pareceu-me que teria alguma razão em julgar que não exorbitara de todo no meu conceito.
Estando nesta altura já bem vincada a língua literária de Aquilino, ter-se-ão sobreposto as suas opções estilísticas. Seria possível traduzir as obras, adaptando-as ao idioma português, aos seus referentes culturais e inclusivamente aos seus idiolectos? Para isso, nem seria necessário diluir as marcas idiossincráticas do autor. E não poderia o trabalho de tradução enriquecer a própria obra, na perspectiva do leitor português? Era preciso encontrar um correspondente idiomático que estivesse à altura de uma das obras maiores das letras universais. E nesta matéria, poucos como Aquilino estariam em condições de fundir o erudito e o popular e de preservar a idiossincrasia cervantina. O próprio escritor reflecte sobre o papel do tradutor, quando pondera: Um escritor que traduz outro abdica da personalidade, que é o principal timbre, se é escritor a valer, da sua arte. Acontece-lhe como ao alferes que perdeu a bandeira. Mas, repito, eu traduzi D. Quixote com o objectivo didascálico de o estudar, para mais numa hora em que nos estão vedadas as fontes da originalidade, se a linfa é outra que não a das bicas a que todos enchem o cântaro. Mas, devo declará-lo, entreguei-me a este labor, menos por furtar-me ao abraço de Caliban do que com o escopo bem assente de examinar a tessitura íntima da composição de Cervantes, com a secreção do pensamento (...) É isso que me traz ao proscénio público a expressá-lo, uma vez que adquiri esse direito desde que pretendi nacionalizar, digamos, o engenhoso fidalgo e o escudeiro fiel». In Henrique Almeida, Tradução ou Adaptação? A versão de Aquilino Ribeiro de Autores Clássicos, Universidade C. Portuguesa, Viseu, Revista Máthesis nº 15, 2006.

Cortesia de Máthesis/JDACT