Philosophari placet, sed pavcis
«O processo da evolução
espiritual do homem do Renascimento e as novas experiências culturais e
humanas, em que se realiza, participam, de forma intrínseca, da mundividência
da Antiguidade Clássica e dos valores ético-políticos que a sustentam. A Idade
Média não tinha conhecido a República
de Platão: o pensamento do filósofo era divulgado apenas através de compendia.
A descoberta da Política
de Aristóteles dá-se no século XIII. A obra de Diógenes Laércio,
que ilustra todas as escolas filosóficas antigas, é encontrada nos primeiros
anos de Quatrocentos. Os humanistas italianos dos alvores do Renascimento
abandonam o Aristóteles lógico e físico, símbolo da barbárie estilística
medieval, e procuram na filosofia uma finalidade profundamente humana e um
conteúdo mais vasto, que pudesse abarcar motivos político-morais e os problemas
da vida concreta da sociedade do tempo. Este distanciamento do formalismo
escolástico coincide com a reabilitação do neoplatonismo. Ε sem dúvida através
do platonismo, configurado com o cristianismo, a ética aristotélica, ou mesmo
com a tradição hermética e cabalística, que os conceitos do saber medieval vão
ser alvo de renovação, em figuras como Petrarca, Pier Paolo Vergerio, Lorenzo
Valla, Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola.
Apesar disso, não há
solução de continuidade entre o Humanismo Renascentista e a Época Medieval.
Basta considerarmos o período carolíngio e o designado Renascimento dos séculos
XII e XIII. No decurso de longos períodos, as ideias evoluem lentamente. Se é impossível
encerrar dentro de regras fixas o fervilhar das ideias novas que se defrontam,
ou equacionam de forma diferente ou paralela, com o espírito medieval,
numerosas são as perspectivas que reflectem uma gradual evolução de pensamento
ou uma mera repetição de motivos, de lugares, comuns, transmitidos inconscientemente de autor em autor. O
legado da cultura grega no mundo romano e o génio da sua reelaboração nos
autores latinos, da República ao Império, que a Patrística assimila, deixaram marcas
indeléveis na cultura ocidental, de que o Humanismo Renascentista é o afloramento
mais expressivo.
A língua do Lácio, que Lorenzo Valla, nas Elegantiae linguae Latinae, pretende ver dignificada,
ao propor um ideal de estilo, capaz de conferir dignidade e beleza ao discurso,
assume-se como veículo de comunicação no mundo culto e meio privilegiado de
expressão da consciência humanística. A par
do latim, o grego e o hebraico tornam-se instrumentos indispensáveis ao conhecimento
da Antiguidade e dos textos bíblicos, aos ideais filológicos e exegéticos do
movimento humanista. A divulgação do saber clássico tem um apoio
inestimável na tradução, a partir do século XV, a que deu grande impulso o papa
Nicolau V, fundador da Biblioteca Vaticana. Expressiva é, nesta mesma
linha, a produção literária dos nossos príncipes de Avis, que deram
a maior importância à tradução dos clássicos em linguajem. Os autores gregos eram agora divulgados em latim
pelas traduções de humanistas de renome, em que se destacam as de Leonardo
Bruni e Marsilio Ficino. O valor e significado destas traduções na
orientação cultural e espiritual do movimento humanista, que se afirmava em
Itália, são verdadeiramente notáveis. Basta lembrarmos, por exemplo, a
afirmação do neoplatonismo na Academia platónica florentina, que nasceu do
conhecimento aprofundado da obra de Platão, que as versões de Marsilio Ficino,
feitas sob a égide de Lorenzo de Médicis, propiciaram. Ou o afloramento do
averroismo paduano, que teve como suporte as traduções de humanistas, como
Leonardo Bruni, à obra de Aristóteles, e conheceu em Pomponazzi, no
século XVI, o seu principal defensor. Ou ainda a difusão do neo-estoicismo,
favorecida pela versão latina do Manual
de Epicteto da autoria de Angelo Poliziano». In Nair de Nazaré Castro Soares, Philosophari placet sed pavcis, Universidade
de Coimbra, Revista Hvmanitas, volume L, 1998.
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U.Coimbra/JDACT