sábado, 27 de setembro de 2014

Terra Inquieta. Manuel Faria. «Aberto o cesto, lá estava o caldo verde com torinha escarlate, a fumegar, o arroz de bacalhau inglês com azeitonas, as doiradas alheiras com batatas fritas, a caneca e as malgas para encher de vinho novo... E aquela moçoila morena de olhos garços, sobrinha do velho rendeiro, que se debruça na relva…»

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De Profundis...
«(…) Ponho-me a ler, vagarosamente, como quem mergulha num sonho, alquebrado e brando, uma crónica dos meus Obeliscos, redigida em 83 da nossa era, a era promissora do 25 de Abril, que nos veio trazer um arzinho fresco da Europa. A referida crónica conduz-me ao Parque da Ponte, ex-libris da cidade, ao meu parque de menino e moço, povoado de tílias e grisetas, em festivas noites de S. João, com doces brancos de romaria engalanando as tendas do arraial, a aguçar o apetite momentâneo dos forasteiros; o vinho verde do verde Minho a jorrar dos pipos e a pentear o vidrado argênteo das malgas; as rusgas serpenteando à roda da capelinha votiva; a música metálica, num chocalhar de acordes, a emergir do coreto sinfónico..., tudo sob as copas verde-negras das tílias acolhedoras. Lentamente, deixo-me embalar por estas melodias saudosas, que me trazem dos longes da distância, num sopro de sobrevivência, a bíblia inteira, a desdobrar-se em cânticos de amor e eternidade... As águas do Rio Este, transmudado em Rio Jordão, a borbulharem nos pés descalços de Jesus e do Santo Precursor. O primeiro baptismo da história sob os braços pendentes dos chorões. As danças voluptuosas na faustosa corte palaciana de Herodes, com Salomé glorificada; a cabeça do profeta, a servir de prémio à gloriosa rainha do festim, em bandeja de oiro... E tudo isto, em aguarela de sonho, sob a suavíssima rescendência das tílias do Parque da Ponte! Despenha-se no meu ângulo visual a primeira página da gazeta bracarense. Leio, de relance, esta notícia desoladora: Abate de Tílias no Parque da Ponte.
Arboricídio execrável de almas centenárias, de cernes portentosos a desafiar a imortalidade, no limiar deste segundo milénio da era de Cristo! Oito caducifólias gigantescas, de longos e rijos braços, que seguraram ninhos de amor e corações de folhas, fotolisando vidas e espalhando nos espaços bracarenses maviosíssimos perfumes! Conluio nefando de autarcas e madeireiros, neste crime ecológico de lesa Natureza! Parafraseando Augusto Gil, inefável Autor da Balada da Neve, interiorizo, lugubremente, este versículo lírico: caem tílias no Parque da Ponte e caem tílias em meu coração!
O arboricídio camarário do Parque da Ponte, encaminhando a minha veneração botânica para o caso específico das tílias, faz-me rememorar certas vivendas palacianas, cujo portão de acesso, sob telheiro musgoso, é decorado, de cada lado, por tílias gigantescas. É o caso da Quinta de S. José, na Grandra de Cima, junto às terras que o velho Bernardo, nosso caseiro, trabalhava. Quando no tempo de meu pai para aí nos dirigíamos, a fim de assistirmos às tiradas do vinho, muitas vezes nos deliciávamos com o odor acre dos mostos, misturado com a fragância rescendente das tílias do vizinho. Com que fundas saudades eu recordo aquele varandim de telheiro, ao cimo, de toscos degraus de pedra, onde ao meio dia tomávamos as nossas refeições, que a Júlia, a velha empregada da casa nos trazia, no clássico cesto de vime, que esbaforida da jornada, assentava no último degrau da escada rústica!
Aberto o cesto, lá estava o caldo verde com torinha escarlate, a fumegar, o arroz de bacalhau inglês com azeitonas, as doiradas alheiras com batatas fritas, a caneca e as malgas para encher de vinho novo... Sentados a uma mesa elevatória, e bem aconchegadinhos à mesma braseira humana, risonhos de alegria esfuziante e de apetite, devorávamos, sob o olhar feliz do meu pai, as mais saborosas refeições que me foi dado comer em toda a minha vida! E aquela moçoila morena de olhos garços, sobrinha do velho rendeiro, que se debruça na relva, sob as ramadas, para colher os bagos caídos e, de braço em asa de ânfora, os transportava, religiosamente, para os balseiros, qual sacerdotisa de Dionísio, envolta em bacanal ostensório de cachos e parras?!... E a senhora Inácia, encarquilhada velhinha, a secar o linho na eira de pedra, para depois o fiar como a Parca, a Cloto da fábula, na incerta roca da vida! A que siderais espaços pagãos me conduzem a Tília argentea e a Tília europeia, tão maltratadinhas pelas autarquias da sacrossanta urbe dos arcebispos!» In Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.

Cortesia de APPACDM/JDACT