De
Profundis...
«(…)
Ponho-me a ler, vagarosamente, como quem mergulha num sonho, alquebrado e brando,
uma crónica dos meus Obeliscos, redigida
em 83 da nossa era, a era promissora do 25 de Abril, que nos veio trazer
um arzinho fresco da Europa. A
referida crónica conduz-me ao Parque da Ponte, ex-libris da cidade, ao meu parque de menino e moço, povoado de
tílias e grisetas, em festivas noites de S. João, com doces brancos de romaria
engalanando as tendas do arraial, a aguçar o apetite momentâneo dos
forasteiros; o vinho verde do verde Minho a jorrar dos pipos e a pentear o
vidrado argênteo das malgas; as rusgas serpenteando à roda da capelinha votiva;
a música metálica, num chocalhar de acordes, a emergir do coreto sinfónico..., tudo
sob as copas verde-negras das tílias acolhedoras. Lentamente, deixo-me embalar
por estas melodias saudosas, que me trazem dos longes da distância, num sopro
de sobrevivência, a bíblia inteira, a desdobrar-se em cânticos de amor e
eternidade... As águas do Rio Este, transmudado em Rio Jordão, a
borbulharem nos pés descalços de Jesus e do Santo Precursor. O primeiro
baptismo da história sob os braços pendentes dos chorões. As danças voluptuosas
na faustosa corte palaciana de Herodes, com Salomé glorificada; a cabeça do
profeta, a servir de prémio à gloriosa rainha do festim, em bandeja de oiro...
E tudo isto, em aguarela de sonho, sob a suavíssima rescendência das tílias do
Parque da Ponte! Despenha-se no meu ângulo visual a primeira página da gazeta bracarense.
Leio, de relance, esta notícia desoladora: Abate
de Tílias no Parque da Ponte.
Arboricídio
execrável de almas centenárias, de cernes portentosos a desafiar a
imortalidade, no limiar deste segundo milénio da era de Cristo! Oito
caducifólias gigantescas, de longos e rijos braços, que seguraram ninhos de
amor e corações de folhas, fotolisando vidas e espalhando nos espaços
bracarenses maviosíssimos perfumes! Conluio nefando de autarcas e madeireiros,
neste crime ecológico de lesa Natureza! Parafraseando Augusto Gil,
inefável Autor da Balada da Neve,
interiorizo, lugubremente, este versículo lírico: caem tílias no Parque da Ponte e caem tílias em meu coração!
O
arboricídio camarário do Parque da Ponte, encaminhando a minha veneração
botânica para o caso específico das tílias, faz-me rememorar certas vivendas
palacianas, cujo portão de acesso, sob telheiro musgoso, é decorado, de cada
lado, por tílias gigantescas. É o caso da Quinta de S. José, na Grandra de Cima,
junto às terras que o velho Bernardo, nosso caseiro, trabalhava. Quando no
tempo de meu pai para aí nos dirigíamos, a fim de assistirmos às tiradas do vinho, muitas vezes nos
deliciávamos com o odor acre dos mostos, misturado com a fragância rescendente
das tílias do vizinho. Com que fundas saudades eu recordo aquele varandim de
telheiro, ao cimo, de toscos degraus de pedra, onde ao meio dia tomávamos as
nossas refeições, que a Júlia, a velha empregada da casa nos trazia, no
clássico cesto de vime, que esbaforida da jornada, assentava no último degrau
da escada rústica!
Aberto
o cesto, lá estava o caldo verde com torinha escarlate, a fumegar, o arroz de bacalhau
inglês com azeitonas, as doiradas alheiras com batatas fritas, a caneca e as
malgas para encher de vinho novo... Sentados a uma mesa elevatória, e bem
aconchegadinhos à mesma braseira humana, risonhos de alegria esfuziante e de
apetite, devorávamos, sob o olhar feliz do meu pai, as mais saborosas refeições
que me foi dado comer em toda a minha vida! E aquela moçoila morena de olhos
garços, sobrinha do velho rendeiro, que se debruça na relva, sob as ramadas,
para colher os bagos caídos e, de braço em asa de ânfora, os transportava, religiosamente,
para os balseiros, qual sacerdotisa de
Dionísio, envolta em bacanal ostensório de cachos e parras?!... E a senhora
Inácia, encarquilhada velhinha, a secar o linho na eira de pedra, para depois o
fiar como a Parca, a Cloto da fábula, na incerta roca da vida! A
que siderais espaços pagãos me conduzem a Tília argentea e a Tília
europeia, tão maltratadinhas pelas autarquias da sacrossanta urbe dos
arcebispos!» In Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN
972-8195-10-9.
Cortesia
de APPACDM/JDACT