sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Terra Inquieta. Manuel Faria. «A pequenina ilha do Corvo, última do arquipélago açoriano, a sonhar, no seu isolamento atlântico, com a dádiva hagiológica de algum barco que lhe mostrasse o caminho migratório da libertação e em cujo largo principal, o seu ‘jornal falado’»

jdact

«(…) Nas suas relações da geologia com a Antropologia Cultural, podemos dizer que estes mitos foram, afinal, gerecidos pela abrasão marinha, em terras do litoral minhoto. É-me já habitual visitar este local encantador, onde o eucaliptal e a resina impregnam a brisa de balsâmicos odores, e o cosmorama das águas atlânticas beijando as areias e rondando a planície, de ubérrimas pradarias e auspiciosos casais, que já foi fundo de mar, contemplando, ao longe, a arriba fóssil em geológica nostalgia. É este o vasto e surpreendente horizonte que se nos depara desde Marinhas até Vila do Conde, visto do alto da capelinha, a qual nos faz lembrar um trecho dos Simples, de Guerra Junqueiro: uma alva ermidinha sob o azul magoado, como ninho branco de ideal poisado, na cumeeira ocidental da montanha. Quando a visitei a última vez, andava em execução o traçado da estrada de acesso, em socalcos de paralelos, desde o largo dos coretos até ao piso final do miradouro, e as escadas, em granito de grão fino, que conduzem à capelinha do Santo.
Recordo que me impressionou sobremaneira o disparate de fazer seguir aquela via pela zona da habitação castreja, cortando a direito as casas circulares e arruamentos daquele trecho do castro de S. Lourenço, deixando de onde em onde alguns pedaços daqueles habitáculos multimilenários. Sempre que para aí me dirijo, como no dia de hoje (6 de Julho de 1993), procuro seguir o curso das escavações, na encosta Norte, agora de melhor sucesso, por caminho empedrado e vedação.

Tempo Livre, é uma simpática revista de viagens, informação geral, cultura e recreio que, semanalmente, cai no ângulo visual da minha liberdade a tempo inteiro. Leio-a sempre com fogoso interesse de velho viajeiro, hoje de asas quebradas, no meu presídio de octogenário, já incapaz de planar e sorver em fundos haustos o vasto horizonte da vida. O número de hoje traz-me, nas Marinhas de Sal da Fonte da Bica de Rio Maior, a lembrança enternecedora de uma pedagogia remota, a do sal-gema e dos vales tifónicos, em que eu pontificava, qual Coménius, do alto da cátedra, ou então, feito travesti de Maria Montessori, discorrendo sobre as salinas aveirenses, a reunir nos seus talhos e regueiras, como marnoto de modernidade didáctica, todo o programa científico do primeiro ciclo liceal. A pequenina ilha do Corvo, última do arquipélago açoriano, a sonhar, no seu isolamento atlântico, com a dádiva hagiológica de algum barco que lhe mostrasse o caminho migratório da libertação e em cujo largo principal, o seu jornal falado, em que às tardes se reuniam os velhos corvinos, faz-me recordar a insularidade profissional de que consegui escapar, graças aos bons ofícios do Fulano Tal, então Ministro da …, que me abriu as portas acolhedoras do Liceu de D. João III. Desta revista, O Tempo e as Palavras, de Crespo Fabião, tem sido para mim a secção mais aliciante e erudita, pois toca de perto esse mundo misterioso das línguas, onde a minha ansiedade de impenitente sonhador gostaria de penetrar, como último reduto de uma vivência cerebral, em busca da derradeira luz, nos caminhos sinuosos da verdade. Sondar, na fonte primeva do Génesis o verbo que fez deflagrar o Big Bang do nosso universo das Línguas, tem sido, neste meu débil e exausto caminhar para o Desconhecido, a minha premente e fatal ambição de peregrino da vida. Que língua(s) falava Jesus, é o texto que hoje traz a revista. Ora consultando os dados evangélicos contidos no Velho Testamento bíblico, nas suas versões Septuaginta e Vulgata, sete foram as palavras que Jesus proferiu do alto da Cruz. Estas sacrossantas palavras que Haydn transpôs para a música e S. Jerónimo verteu para latim foram:
  • Eloí, EIoí, lamma sabacthani, quod est, Deus, Deus quare me dereliquisti?
na tradução portuguesa:
  • Isto é, Deus, Deus, porque me abandonaste?
Estas misteriosas palavras foram ditas em língua aramaica ou arameu, a língua que Jesus falava, aquela em que Ele contava as suas parábolas, dialogava com os discípulos e discorda nos seus divinos sermões, como o da montanha». In Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.

Cortesia de APPACDM/JDACT