O
homem que assinava com um ribeiro
«Ruysdael
é um grande pintor muito mal apreciado. Limitado que está pelos manuais
destinados a paisagistas, o que é uma definição muito restrita, pois que a
paisagem assim tratada quer dizer tudo, somos tentados a ver nele um
pré-romântico à Salvator Rosa, acumulando folhagens e rochedos para produzir
efeitos surpreendentes e decorativos. E esse sombrio sonhador difere muito,
certamente, dos outros retratistas da terra holandesa, incluindo Rembrandt
aguarelista e gravador. Todos se distinguem pelo sentido das perspectivas imóveis
que são as do seu país, pelo traçado sempre bem visível da linha do horizonte,
pela presença plana das águas e pela doce mistura de bruma e de claridade que é
a dos céus da Holanda.
Pelo
contrário, Ruysdael (e, mais tarde, Hobbema, mas este foi seu aluno)
escolheu amar sobretudo os bosquezinhos emaranhados, sem serem impenetráveis,
isolados na lande ou, mais raramente, na planície arável por detrás dos quais
se descobre sempre uma extensão de céu, a água fervilhante de pequenas
torrentes que parecem ter puído as pedras com o tempo, algumas aldeias geladas
pelo Inverno, quase brutalmente fechadas, onde a própria presença de um patinador
seria incongruente e o peso enorme de algumas marinhas com navios balouçando na
água agitada. Destas sombrias visões numa realidade que se assemelha ao sonho,
as mais estranhas são talvez os seus cemitérios judeus nas proximidades de Amesterdão,
sobretudo a tela de Dresda.
Falou-se
de simbolismo: decerto que qualquer paisagem simboliza, quanto mais não
seja, como se disse, um estado de alma. Na verdade, bem parece que o
artista amador de :contrastes de luz e de sombra teve sobretudo nesse cemitério
judeu a sorte do que então se chamava um belo motivo. Uma igreja romana em
ruínas em último plano, entre folhagens escuras, troncos de árvores descopados
ou retorcidos, sepulturas, um ribeiro, que é quase a assinatura de Ruysdael;
erodindo a terra e que os ricos possuidores desse campo dos mortos por certo
que; na realidade, não teriam deixado infiltrar-se assim. Tudo isso; se se
quiser, é uma alegoria do fim das coisas ou das promessas de além-túmulo (às
quais faria alusão, na réplica de Detroit, um arco--íris) ou da indiferença da
natureza ou, pelo contrário, de uma vida vegetal tão vencida pelo tempo como os
monumentos humanos. É possível que o pintor aí tenha visto principalmente o
encanto tão forte sobre ele de uma sombria realidade que se transpõe pouco a
pouco em sonho». In Marguerite Yourcenar, En Pélerin et Étranger, Gallimard, 1989,
Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros do Brasil, Lisboa, 1990.
Cortesia
LBrasil/JDACT