quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Ensaios. Peregrino e Estrangeiro. Marguerite Yourcenar. «Uma igreja romana em ruínas em último plano, entre folhagens escuras, troncos de árvores descopados ou retorcidos, sepulturas, um ribeiro, “que é quase a assinatura de Ruysdael”»

jdact e cortesia de ruysdael

O homem que assinava com um ribeiro
«Ruysdael é um grande pintor muito mal apreciado. Limitado que está pelos manuais destinados a paisagistas, o que é uma definição muito restrita, pois que a paisagem assim tratada quer dizer tudo, somos tentados a ver nele um pré-romântico à Salvator Rosa, acumulando folhagens e rochedos para produzir efeitos surpreendentes e decorativos. E esse sombrio sonhador difere muito, certamente, dos outros retratistas da terra holandesa, incluindo Rembrandt aguarelista e gravador. Todos se distinguem pelo sentido das perspectivas imóveis que são as do seu país, pelo traçado sempre bem visível da linha do horizonte, pela presença plana das águas e pela doce mistura de bruma e de claridade que é a dos céus da Holanda.
Pelo contrário, Ruysdael (e, mais tarde, Hobbema, mas este foi seu aluno) escolheu amar sobretudo os bosquezinhos emaranhados, sem serem impenetráveis, isolados na lande ou, mais raramente, na planície arável por detrás dos quais se descobre sempre uma extensão de céu, a água fervilhante de pequenas torrentes que parecem ter puído as pedras com o tempo, algumas aldeias geladas pelo Inverno, quase brutalmente fechadas, onde a própria presença de um patinador seria incongruente e o peso enorme de algumas marinhas com navios balouçando na água agitada. Destas sombrias visões numa realidade que se assemelha ao sonho, as mais estranhas são talvez os seus cemitérios judeus nas proximidades de Amesterdão, sobretudo a tela de Dresda.
Falou-se de simbolismo: decerto que qualquer paisagem simboliza, quanto mais não seja, como se disse, um estado de alma. Na verdade, bem parece que o artista amador de :contrastes de luz e de sombra teve sobretudo nesse cemitério judeu a sorte do que então se chamava um belo motivo. Uma igreja romana em ruínas em último plano, entre folhagens escuras, troncos de árvores descopados ou retorcidos, sepulturas, um ribeiro, que é quase a assinatura de Ruysdael; erodindo a terra e que os ricos possuidores desse campo dos mortos por certo que; na realidade, não teriam deixado infiltrar-se assim. Tudo isso; se se quiser, é uma alegoria do fim das coisas ou das promessas de além-túmulo (às quais faria alusão, na réplica de Detroit, um arco--íris) ou da indiferença da natureza ou, pelo contrário, de uma vida vegetal tão vencida pelo tempo como os monumentos humanos. É possível que o pintor aí tenha visto principalmente o encanto tão forte sobre ele de uma sombria realidade que se transpõe pouco a pouco em sonho». In Marguerite Yourcenar, En Pélerin et Étranger, Gallimard, 1989, Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros do Brasil, Lisboa, 1990.

Cortesia LBrasil/JDACT