«(…) Julguei que era uma patuscada e é uma agonia; uma pessoa pode enganar-se
quanto ao soluço. Riamos porém.
A morte está à mesa. A última
gota brinda com o último suspiro. Uma agonia no meio da paródia, esplêndida
coisa. O cólon intestinal é rei. Todo este velho mundo festeja e rebenta. E Rabelais
entroniza uma dinastia de ventres: Grandgousier, Pantagruel e Gargântua. Rabelais
é o Ésquilo da comezaina, o que é grande, se nos lembrarmos que comer é devorar.
Há um abismo no comilão. Comei, pois, senhores, e bebei, e acabai. Viver é uma
canção cujo refrão é morrer. Há quem escave sob o género humano depravado
temíveis calabouços; em matéria de subterrâneos, o grande Rabelais contenta-se com
a cave. O universo que Dante punha no inferno, Rabelais mete-o dentro
dum casco. O seu livro não é outra coisa. Os sete círculos de Alighieri
abarrotam e encerram este prodigioso tonel. Olhai para dentro do monstruoso
casco, e aí os vereis. Em Rabelais chamam-se: Preguiça,
Orgulho, Inveja, Avareza, Cólera, Luxúria, Gula; e é assim que de repente
vos encontrareis com o temível folgazão. E
onde? Na igreja. Os sete pecados são a prédica deste cura. Rabelais
é padre, e o correctivo bem ordenado começa por si próprio. É, pois, no clero
que bate primeiro. O que é ser da casa! O papado morre de indigestão, Rabelais
faz-lhe uma farsa. Farsa de titã. A alegria pantagruélica não é menos grandiosa
que a alegria jupiteriana. Maxila contra maxila; a maxila monárquica e sacerdotal
come; a maxila rabelaisiana ri. Quem tiver lido Rabelais terá sempre
diante dos olhos esta confrontação severa: a máscara da Teocracia fixamente contemplada
pela máscara da Comédia». In Victor Hugo
Rabelais no tempo de Gargântua
«Desde o dia de Todos-os-Santos de 1632,
Rabelais é médico-chefe do Hospital de Notre-Dame-de-Pitié de Pont, du
Rhone, em Lyon: funções pouco lucrativas (40 libras por ano) mas que atestam a
reputação médica de Rabelais, embora não figure no catálogo de
Symphorien Champier. As suas primeiras publicações referem-se à medicina
(Lettres médicales de Manardi, Aforismos de Hipócrates) ou à sátira humanista (pseudo-testamento
de Cuspidius). Mas o seu verdadeiro génio surge Pantagruel,
publicado para a primeira feira de Novembro de 1532, desopressão pelo riso ante a estupidez humana. No rasto de
Erasmo, mas de modo menos concertado e mais jovial, Rabelais contribui
para o enterro da tradição escolástica e a restauração da idade áurea das Humanidades. Irá ele descansar à sombra do êxito
do seu romance, consagrado pela condenação da Sorbonne, 1533, por obscenidade? Pelo contrário, persevera e, pegando
na genealogia do seu herói de trás para a frente, conta as aventuras do pai
deste, Gargântua, bem-conhecido do público desde o aparecimento do
folheto de cordel Les grandes et
inestimables Cronicques de l’énorme géant Gargantua (1532).
Vida em Chion e em Roma
Nem o cargo no Hospital nem as suas diversas publicações fazem de
Rabelais um sedentário; em 1532, foi
revisitar a sua terra de vacas, com a
Devinière natal e os burgos vizinhos, Gravot, Chavigny, Cinays. Escutou as
lamentações do seu velho pai, Antoine Rabelais, em demanda com o vizinho
e antigo amigo, Gaucher de Saint-Marthe, senhor de Lerné, médico da abadessa de
Fontevrault. A chicana transformou em inferno o paraíso rústico. Antoine já não
pode, como o bom Grandgousier, cozer as suas castanhas no átrio com toda a
tranquilidade. Terá Françoise posto os
seus conhecimentos jurídicos ao serviço do pai? Não se sabe, mas fará
melhor, pois, no seu romance, o irascível Gaucher tornar-se-á o arrogante
Picrocole, finalmente vencido e refugiado em Lyon, pobre jornaleiro colérico, à espera de que as galinhas tivessem
dentes. O riso consolará das maçadas do processo». In Rabelais, Gargantua,
Gargântua, Publicações Europa-América, Clássicos, 1987.
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