quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Sete Cartas a um Jovem Filósofo. Obras de Agostinho da Silva. «Que o levou a não ser médico ou engenheiro ou comerciante, a ter uma profissão lucrativa, a acumular uma fortuna e a ter’ depois uma vida de filosófico repouso?’ Por que não tomou ainda um terceiro caminho…»

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As Cartas
«(…) Se você não se importa, punhamos de lado o primeiro dos problemas que neste ponto se poderiam levantar e que seria o seguinte: se você, agora, é que vai aprender filosofia, se você ainda não tem a tal concepção do mundo, por que razão se decide por um dos caminhos? Que o levou a não ser médico ou engenheiro ou comerciante, a ter uma profissão lucrativa, a acumular uma fortuna e a ter depois uma vida de filosófico repouso? Por que não tomou ainda um terceiro caminho: o de uma profissão lucrativa casada com a filosofia? Não foi por ter razões, porque elas só poderão existir depois da filosofia; foi por instinto, por temperamento? Curiosa posição para um filósofo; terei muito gosto em que me demonstre, em qualquer altura da sua vida, que agiu por motivos racionais, porque eu, meu caro Amigo, fico desde já com a impressão de que você agirá sempre por temperamento, como, segundo me parece, agem todos os homens. Isto, porém, foi só apontar a questão: não a discutiremos por agora.
Há outro problema, e muito grave. Posso estar na vida em três atitudes principais: a de dar, a de receber, a de dar e receber. Como tipo da primeira poderíamos pôr Jesus, como tipo da segunda eu, que você está sempre a acusar de egoísmo, como tipo da terceira atitude os milhões e milhões dos nossos semelhantes. O seu caminho parece ser o de dar, sem nada pedir, o que leva quase sempre a nada receber e até, por uma espécie de esclerose, a nada querer receber; negarei que é um caminho muito belo, sob o ponto de vista artístico? Claro que não. E muito difícil. Já lhe conhecemos todos os episódios principais, sabemos da calúnia e da traição, da flagelação e da coroa de espinhos, do caminho sob a cruz, e do calvário. Sob o ponto de vista estético, desejo que renove a história, no seu plano, evidentemente, com simplicidade, sentido de composição, humanidade e, se puder, convicção; mas talvez seja o contrário: talvez seja mais belo fazer o mesmo sem convicção nenhuma, sem ter nenhuma ideia clara da verdade; já lhe tenho dito por várias vezes que me perece ser a incerteza de Jesus, a sua recusa diante de Pilatos, um dos elementos mais impressionantes de toda a história da Paixão. Cristo morreu sem certezas, ou, pelo menos, sem nenhuma das certezas que seriam essenciais: por isso o venero tanto.
É evidente que se poderia retorquir que ter assente o dar é já possuir uma certeza; mas não deve ser certeza de ordem racional, porque você, repito, não tem ainda uma filosofia; é uma certeza de ordem temperamental. Estará certo o seu temperamento? Um temperamento está sempre certo em dois sentidos: primeiro, biologicamente, depois na máquina do mundo. Biologicamente porque, dados os seus ascendentes, não podia ser senão o que foi: é uma questão de genética e que não põe de modo algum o problema do livre arbítrio, porque o exercício da vontade sobre o temperamento é uma questão diferente da fatalidade de temperamento; biologicamente ainda, porque tem de se contar com toda a influência do metabolismo no temperamento, a menos que você, radicalmente, não ponha tudo isso como uma acção a distância do gene; terceira vez biologicamente porque você vive em simbiose com os homens e com os outros animais e essa simbiose não pode deixar de lhe trazer modificação ao que seria, digamos, o seu temperamento inicial. Por outro lado, o seu temperamento está sempre certo quanto à máquina do mundo: passamos por aqui da biologia à física, e se quiser à matemática: cada estádio do mundo é uma dedução, um desenvolvimento correcto, segundo a regras, de um estádio anterior; segundo que regras? Segundo as regras de uma matemática universal? Creio que não; segundo as regras da nossa miserável matemática, da única que podemos conhecer. Mas segundo regras, e é o que importa. Mas o seu temperamento, se está certo segundo a ordem do poder, que é a da biologia e a da física, pode não estar certo no plano do querer; que é o do espírito». In Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, 1943, colecção Obras de Agostinho da Silva, Ulmeiro, 1990, ISBN 972-706-217-2.

Cortesia de Ulmeiro/JDACT