quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Estudos de História da Cultura Portuguesa. Linguística e Paleo-Etnologia. Justino Mendes Almeida. « A bofee, que Deos mantenha er assim todos e todas que sedes naquestas vodas, bõa Pascoa que vos venha! Benito, aquí estaa la boda»

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Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) O passo não tem necessariamente uma significação objectiva: a personagem não seria afastada daquele lugar nem pela Justiça nem pela Força. Ou estariam efectivamente presentes na representação o juiz de Abrantes (a que propósito!) e o porteiro dos Infantes? Argumento de ordem métrica: a Obra da Geraçã humana apresenta três estrofes diferentes, o que nos situa sem dificuldade na rica metrificação vicentina. 75% dos versos do Auto seguem o esquema ABc ABc (as maiúsculas indicam os versos acentuados na 7.ª sílaba, as minúsculas o quebrado, acentuado na 3.ª ou 4.ª sílaba). No conjunto do teatro português do século XVI, esta estrofe só se encontra com representação significativa na obra de Gil Vicente. 11,5% dos versos obedecem ao esquema ABBAACCA, que somente se encontra no primeiro Auto das Barcas, sem exemplo no teatro não vicentino. 13,5 % de versos com o modelo ABBAa CCAc não se encontram sequer em Gil Vicente, o que seria mais uma razão para lhe atribuir a autoria, pois só ele soube utilizar com mestria tal diversidade de ritmos. Révah considera de valor decisivo estes argumentos de ordem métrica: a Obra da Geraçã humana só pode ser de Gil Vicente, e temos de convir em que de facto se trata de razões ponderosas. Nos domínios do vocabulário, da fraseologia e da estilística, as semelhanças com as obras de Gil Vicente são tais que Révah reconhece a necessidade de remeter o leitor para a edição anotada que nesse tempo preparava e que, tanto quanto sabemos, não pôde infelizmente concluir. Recorda, no entanto, dois exemplos que considera elucidativos. No diálogo entre os diabos, diz Abiram:

Demando aa puridade
que me diga a verdade
se a de ser das nossas bandas
este abade.

Abade, forma grosseira de designar Adão, só se encontra em Gil Vicente. Cita dois exemplos, um do Auto da Cananeia, outro do Clérigo da Beira. O segundo exemplo refere-se ao uso da palavra doneguil, usada pelo lavrador Joam d’Acenha, que permitiu corrigir o erro de imprensa deneguil do segundo Auto das Barcas. Trata-se de um vocabulário correspondente ao antigo espanhol doñeguil. No estudo da técnica teatral enriquece-se, segundo Révah, a atribuição do Auto a Gil Vicente, com argumentos considerados decisivos. Começa pelo estudo do prólogo do Auto. Chama a atenção para o facto importante de nele não aparecer, como em Gil Vicente também se não encontra, o Representador, personagem frequente no teatro pós-vicentino.
Em compensação, certos elementos do prólogo da Obra da Geraçã humana apresentam semelhança com passos de obras de Gil Vicente. Por exemplo: o lavrador Gil picote considera os espectadores da representação como convivas de uma boda:

A bofee, que Deos mantenha
er assim todos e todas
que sedes naquestas vodas,
bõa Pascoa que vos venha!

enquanto o pastor Bras, do Auto da Fé, exclama ao entrar em cena:

Benito, aquí estaa la boda.

outra semelhança: Joam d’Acenha, ao entrar, esquece a cortesia devida à assistência, tal como os dois pastores, Bras e Benito do Auto da Fé:

que no hizimos los dos
revellencia quando entramos.

Exemplo também esclarecedor é a intervenção do Anjo, ao explicar aos dois rústicos o tema da arremedaçam. Révah recorda que é igualmente um Anjo a recitar o prólogo do Breve Sumário da História de Deus, e disto há um só exemplo no teatro espanhol do século XVI, mas nenhum outro no teatro português quinhentista». In Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis, Lisboa, 1996.

Cortesia da Academia P. de História/JDACT