sábado, 22 de novembro de 2014

A Estalagem dos Assombros. Seomara Veiga Ferreira. «Ah, Dona Doce, regressaremos a Coimbra logo que nasça o Sol ou melhor, na hora terça. Se pudésseis adivinhar, Dona Doce, o que esta estalagem me faz recordar! Perto de cinquenta anos de vida e de memória!...»

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As palavras sublimes do vento
«(.,,)
Vem noite, que é a morte,
e a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
tiram-te os Anjos e a capa:
segues sem capa no ombro,
com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
mas vês que são teus iguais.
(...)»
Poema de Fernando Pessoa, in ‘Iniciação

«Dona Doce, penso na verdade que não posso continuar, minha querida. Mandai chamar o Simão Diego. Olhei através da fissura da cortina de cabedal que cobria a janela da carroça onde se amontoam com os baús, sempre que viajo, duas das minhas damas e vós, a minha anã das confidências, como vos chama o meu senhor, rei e marido. O frio tolhe-me. A chuva, diluvial, cai em bátegas fortes e eu sinto-me febril. Senhora, há aqui perto uma estalagem de um primo do Afonso, o tratador dos cavalos. Olhei Dona Doce, mirei os seus enormes olhos negros, luminosos, onde ardia uma luz antiga, meiga, quase apaixonada. É estranho, essa luz existe em qualquer pessoa, quando existe, seja ela feia, aleijada, marreca, quase sem pernas, como a Maria Miguéis a quem chamo Dona Doce, uma luz antiga como o mundo, segredo da bondade de Deus e da sua sabedoria. O cortejo parou mais de duas milhas à frente. Faltavam cinco ou seis milhas das antigas até Montemor. A madrugada crescia sobre a cúpula negra da chuva vergastada a vento. El-Rei partira já há muitas horas. Mais do que isso. Quase dois dias. Que loucura a minha! Já era tarde, certamente. Dona Doce tratou dos pormenores e instalámo-nos num quarto, o mais asseado da velha estalagem. Os homens e os cavalos ficaram na cavalariça. As damas e a minha camareira em baixo bem aconchegadas com os servos. Eu e Dona Doce, depois de ela preparar a cama com as peles e as mantas que trouxéramos, lá nos aconchegámos depois de espevitar o lume no braseiro.
Dispensei Dona Branca porque a idade a tolhera já. Minha camareira há tantos anos! Já viúva, idosa, mas sempre fiel, cuidadosa, presa a mim como uma mãe. Senhora, El-Rei a esta hora já dorme e deve regressar cedo. Afirmei que o adivinhara. O meu coração ditara-o. O meu príncipe, o meu bravo príncipe das Ilusões Perdidas como, a brincar, lhe chamava nos doces momentos da nossa intimidade, iria perder mais uma, se é que não a perdera já. Mas aquece-me, apesar de tudo, uma réstia de esperança. Estamos no início da noite. Por volta da hora prima teremos dormido o tempo suficiente e talvez o temporal acalme entretanto. Ah, Dona Doce, regressaremos a Coimbra logo que nasça o Sol ou melhor, na hora terça. Se pudésseis adivinhar, Dona Doce, o que esta estalagem me faz recordar! Perto de cinquenta anos de vida e de memória!... E quantas fronteiras os quebraram! Sempre vi as coisas assim. As fronteiras são cicatrizes, quer as físicas, geográficas, territoriais, quer as interiores, as que bordam de tristeza ou alegria e felicidade as vossas almas. Esta noite de Janeiro, dia 6 de 1393, da Era de César, esta noite onde a natureza também parece revoltar-se e chorar, nunca, nunca a esquecerei. Infelizmente, embora um rei um dia tenha escrito Monstrant Regibus Astra Viam, não é  verdade. Os astros não mostram nenhum caminho. Somos nós que o traçamos e pedimos o apoio celeste. Ainda bem, Dona Doce, que já nos encontramos protegidas da intempérie. Durante a nossa viagem, enquanto vos observava e às minhas Donas, pensei muito, minha querida, e, como costumo fazer dividi-me em duas, eu e a rainha, para falar comigo, para falarmos uma com a outra e compreender as recordações, as imagens, os factos que me chegam à memória como relâmpagos de ouro e diamante». In Seomara Veiga Ferreira, Inês de Castro, A Estalagem dos Assombros, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3716-8.

Cortesia de Presença/JDACT