As palavras sublimes do vento
«(.,,)
Vem noite, que é a morte,
e a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
tiram-te os Anjos e a capa:
segues sem capa no ombro,
com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
mas vês que são teus iguais.
(...)»
Poema de Fernando Pessoa, in ‘Iniciação’
«Dona Doce, penso na verdade que não posso continuar, minha
querida. Mandai chamar o Simão Diego. Olhei através da fissura da cortina de
cabedal que cobria a janela da carroça onde se amontoam com os baús, sempre que
viajo, duas das minhas damas e vós, a minha anã
das confidências, como vos chama o meu senhor, rei e marido. O frio
tolhe-me. A chuva, diluvial, cai em bátegas fortes e eu sinto-me febril. Senhora, há aqui perto uma estalagem de
um primo do Afonso, o tratador dos cavalos. Olhei Dona Doce, mirei os
seus enormes olhos negros, luminosos, onde ardia uma luz antiga, meiga, quase
apaixonada. É estranho, essa luz existe em qualquer pessoa, quando existe, seja
ela feia, aleijada, marreca, quase sem pernas, como a Maria Miguéis a quem chamo
Dona Doce, uma luz antiga como o mundo, segredo da bondade de Deus e da sua
sabedoria. O cortejo parou mais de duas milhas à frente. Faltavam cinco ou seis
milhas das antigas até Montemor. A madrugada crescia sobre a cúpula negra da
chuva vergastada a vento. El-Rei partira já há muitas horas. Mais do que isso.
Quase dois dias. Que loucura a minha! Já era tarde, certamente. Dona Doce
tratou dos pormenores e instalámo-nos num quarto, o mais asseado da velha
estalagem. Os homens e os cavalos ficaram na cavalariça. As damas e a minha
camareira em baixo bem aconchegadas com os servos. Eu e Dona Doce, depois de ela
preparar a cama com as peles e as mantas que trouxéramos, lá nos aconchegámos
depois de espevitar o lume no braseiro.
Dispensei Dona Branca porque a idade a tolhera já. Minha camareira
há tantos anos! Já viúva, idosa, mas sempre fiel, cuidadosa, presa a mim como
uma mãe. Senhora, El-Rei a esta hora
já dorme e deve regressar cedo. Afirmei que o adivinhara. O meu coração
ditara-o. O meu príncipe, o meu bravo príncipe das Ilusões Perdidas
como, a brincar, lhe chamava nos doces momentos da nossa intimidade, iria
perder mais uma, se é que não a perdera já. Mas aquece-me, apesar de tudo, uma réstia
de esperança. Estamos no início da noite. Por volta da hora prima teremos
dormido o tempo suficiente e talvez o temporal acalme entretanto. Ah, Dona
Doce, regressaremos a Coimbra logo que nasça o Sol ou melhor, na hora terça. Se
pudésseis adivinhar, Dona Doce, o que esta estalagem me faz recordar! Perto
de cinquenta anos de vida e de memória!... E quantas fronteiras os quebraram!
Sempre vi as coisas assim. As fronteiras são cicatrizes, quer as físicas,
geográficas, territoriais, quer as interiores, as que bordam de tristeza ou
alegria e felicidade as vossas almas. Esta noite de Janeiro, dia 6 de 1393, da Era de César, esta noite
onde a natureza também parece revoltar-se e chorar, nunca, nunca a esquecerei.
Infelizmente, embora um rei um dia tenha escrito Monstrant Regibus Astra
Viam, não é verdade. Os astros não
mostram nenhum caminho. Somos nós que o traçamos e pedimos o apoio celeste.
Ainda bem, Dona Doce, que já nos encontramos protegidas da intempérie. Durante
a nossa viagem, enquanto vos observava e às minhas Donas, pensei muito, minha
querida, e, como costumo fazer dividi-me em duas, eu e a rainha, para falar
comigo, para falarmos uma com a outra e compreender as recordações, as imagens,
os factos que me chegam à memória como relâmpagos de ouro e diamante». In Seomara
Veiga Ferreira, Inês de Castro, A Estalagem dos Assombros, Editorial Presença,
Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3716-8.
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