1988. Chamo-lhes Crónicas porque não sei o nome disto
Louvor e simplificação de Pacheco Pereira
«(…) Pode estranhar-se (até eu estranho) a por assim dizer insistência
com que estas crónicas perdem tempo e espaço com Pacheco Pereira, o fogoso
deputado liberal e de esquerda e social-democrata e independente. Pacheco
Pereira é uma oportunidade que um cronista dificilmente pode deixar escapar.
Crónica é relação mais ou menos fiel e verdadeira dos dias, no caso concreto
das semanas, do cronista, e os dias, hoje, são de arrependimento e de arrependidos,
acontecendo que, na circunstância, Pacheco Pereira terá justamente granjeado
estatuto de autêntica metáfora nacional (ainda ninguém se lembrou de um Grande
Prémio Nacional do Arrependimento, mas não menosprezemos a imaginação premiante
portuguesa...). Depois, estes dias poderão também muito bem ser a última
ocasião de falar de Pacheco Pereira e do seu imenso estatuto metafórico, pois o
mais provável é que, daqui a algum tempo, já ninguém se lembre outra vez dele,
e lá se perdiam duas ou três crónicas que, elas scripta manent, permanecem.
A explicação é esta; espera-se que seja convincente... Vem desta vez
Pacheco Pereira a propósito de ter surpreendido o jornalismo menos avisado com
a afirmação de que, de Maio de 68 para cá, pouco mudou na Europa, muito em
Portugal, e que ele próprio não mudou nada! Achou algum jornalismo e algum
cronismo, facilmente levados pelo rio das aparências, que Pacheco Pereira, pelo
contrário, terá mudado muito mais do que Portugal, pelo facto de hoje ter bancada
na Assembleia da República e de ser aí autor das evidências que se conhecem.
Compara esse cronismo os imperativos categóricos que Pacheco Pereira emite hoje
na Assembleia da República com os emitidos pelo mesmo Pacheco Pereira há alguns
anos atrás nas ruidosas fileiras ML. E vê abissais diferenças. Quem vê diferenças,
ensina o Livro do Tao, caminha de morte em morte. Desse castigo está no entanto
livre este vosso criado, que na verdade não vê diferença nenhuma entre o que Pacheco
Pereira dizia há alguns anos e o que diz agora, mesmo, e sobretudo, quando era autor
das mais fervorosas prosas espargindo incenso teórico sobre a prática
estalinista.
Quem não vê diferenças, explica agora a oftalmologia caminha para a
miopia galopante. Será talvez o caso do cronista destas, para quem Pacheco
Pereira continua tão estalinista como há 20 anos ou há menos. O estalinismo é
que mudou de sítio, eis a tese que aqui se defende. De sítio e de natureza.
Hoje o estalinismo já não manda ninguém par a a Sibéria quando muito manda para
o desemprego, e com subsídio e tudo. Assina com pseudónimo e os seus decretos
perderam o ar do primarismo dos bons velhos tempos. E tendo o estalinismo e a
intolerância mudado de sítio, mesmo tendo-se (o estalinismo e a intolerância)
tornado soft, e descafeinado pelo caminho, que poderia Pacheco Pereira fazer senão correr atrás deles?
A visão teórica da sociedade e do mundo que notabilizaram Pacheco nas
barricadas do marxismo-leninismo como o notabilizaram hoje nas bancadas
parlamentares do PSD ter-se-ão, há-de reconhecer-se; trata-se, todavia, mais do
que de um aggiornamento, de um (como é que se diz?) percurso político. Ora um percurso é um
caminho para chegar a algum sítio, quer se trate de uma viela tortuosa quer da
mais transparente das auto-estradas. No caso de Pacheco Pereira, é convicto da
crónica, trata-se de um caminho para não sair de sítio nenhum. Que seja tão
incompreendido é o preço da coerência desse caminho, porque em política ninguém
perdoa aos que, como Pacheco Pereira, não mudam. Para chegares onde estás, escreve Eliot nos Quatro Quartetos, (tens que seguir por um caminho onde não
há êxtase), e em êxtase foi coisa que nunca nenhum deputado do povo, nem nenhum
povo, viu Pacheco Pereira na Assembleia da República. Quando muito é possível
vê-lo em êxtase nas prosas do Semanário, sobretudo quando se exercita em parágrafos
indescritíveis, e à falta de purgas mais gloriosas, a decretar a purga dos
jornalistas dos jornais estatizados.
(Segundo se lê esta semana no Tempo, o entusiasmo ortodoxo leva-o já a reclamar
purgas dentro do próprio PSD!).
Os jornalistas têm sido, desde os tempos imemoriais da URSS de
Estaline, os mais apropriados objectos de purgas. Os jornalistas e os camaradas
de partido e de bancada. Há uma altura na vida das sociedades e dos partidos,
como na vida das árvores, em que chega o tempo da poda; e as ramificações e as
florescências jornalísticas e partidárias tendem, como se sabe, perigosamente
para a heterodoxia. Se alguma coisa mudou fomos nós, foi o Universo, foi o alfaiate
de Pacheco Pereira; ele não. Talvez esteja um pouco mais gordo, um pouco mais
(sage), talvez tenha perdido alguns cabelos e alguns escrúpulos, mas continua a
ser o bom velho Pacheco Pereira de Maio de 68, de Março de 75 e da semana
passada. Se ele diz que não mudou nada por
que diabo não havemos de acreditar nele? In Manuel António Pina, Jornal de
Notícias, 21/05/1988.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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