sábado, 8 de novembro de 2014

Voz Nua. Poesia. Matilde Rosa Araújo. «Por que as pessoas buscam tão apaixonadamente a arte? A actividade mental, como a matemática, é obviamente benéfica para os humanos, mas de que serve a arte? Porque os políticos…»

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«Aniversário efeméride dolorosa quando se não espera
sinais de manso dizer de uma esperança
quando desaprendemos de esperar já morremos
o circo fechou as suas luzes e cheira a suor e alvaiade
e encontro esse homem nas tesouras do tempo
no jardim a dormir num banco ramo seco de uma árvore de raiz.

E amo desesperadamente esse pária do banco público
sem nada fazer e tanto sabendo
quantos anos faço hoje? Tantos ritos tanto amor sangrado
cheira a suor e alvaiade
cansados e brancos todos os rostos».


«Acordas líquido no teu sangue sobre meu sangue de asas paradas
acordas distante e próximo e cantas-me o cântico sem fundo
cantar amigo inimigo cantar dobrado que desde a infância escutei
e amo-te, amo-te sem saber o objecto amado
sem esquecer todo o óleo derramado em tuas mãos pesadas
de bens que não são os meus
e contudo tudo é amor incoerente e real e que  se reconhece
sem coragem de romper os linhos do amanhã
e não te amo não não se ama esta ferida de mistério
que se sente em já saudade de barro húmido
lavrando no beijo a secura da humilde pele
e eu sei o que é amar e ser amada meus olhos limpos não dizem adeus
e os deuses não esperam».
Poemas de Matilde Rosa Araújo, in ‘Voz Nua’

In Matilde Rosa Araújo, Voz Nua, Livros Horizonte, Lisboa, 2001, ISBN 972-24-1161-6.

Cortesia de LHorizonte/JDACT