Cortesia de wikipedia
Prosa memorialista
(Excerto)
«A principal fonte de informação sobre este período é um
diário particular referente aos acontecimentos decorridos entre 1662
e 1680, intitulado, Monstruosidades do Tempo e da Fortuna,
de que ficaram vários manuscritos, um deles editado em 1888, e que tem sido atribuído com verosimilhança ao beneditino de
Entre Douro e Minho, frei Alexandre Paixão. O ponto de vista deste diário é o
de um moralista muito conservador, antijudaico, favorável a ao monarca Pedro e
à alta aristocracia. Mas a obra contém informações valiosas, graças a certo e
novo gosto de registar efemérides, muito característico da época barroca e ao
qual se devem obras tão notáveis como as Memórias de Saint-Simon ou o Diário de Samuel Pepys. A título de
exemplo, e pelo seu extraordinário interesse para a história do teatro em Portugal,
citemos as referências contidas em Monstruosidades às cartas por títulos e comédias e uma
lista, elaborada por acinte nitidamente antinobiliárquico, em que figuram 117
nomes da aristocracia, ou designações colectivas de grupos dirigentes do País,
seguidos cada qual de um título de comédia espanhola que lhe faz a caricatura;
assim, Francisco Manuel de Melo é caracterizado pelo título da comédia Lances
de Amor y Fortuna, o que parece confirmar a tradição linhagista segundo
a qual a sua prisão tem qualquer relação com aventuras amorosas.
Entre as obras de memórias da época filipina salienta-se a Fastigímia
ou Fastigínia
do jurisconsulto Tomé Pinheiro Veiga (c. 1570-1656), diário de
uma estada do autor em Valhadolid em 1605,
mas com inserção de comentários e acrescentos indubitavelmente posteriores,
obra que correu em numerosas cópias manuscritas. O autor dedica a maior parte
do texto à descrição minuciosa de cerimónias e festejos áulicos e à transcrição
da picante esgrima de galanteios que travou com damas espanholas, cuja
desenvoltura e liberdade o surpreenderam e deleitaram, em contraste com a tirania que em Portugal se usa com as filhas
e as mulheres. Bom observador humorístico, Pinheiro Veiga sabe insinuar,
com humor, uma visão crítica da espaventosa corte de Filipe II (III de
Espanha), do rei, do duque de Lerma e outras personagens, de certos costumes
castelhanos e portugueses, das exibições teatrais do culto religioso, como
procissões de tocheiros e milhares de disciplinantes, sermões em que sucedem farsas solenes, etc. Em
certos pontos, como no gosto da reportagem concreta, da minúcia significativa,
no interesse com que em dado passo refere progressos técnicos recentes, o autor
ganha um ar moderno, apesar do seu lastro de citações clássicas e de conceitos
espirituosos. Um dos maiores interesses do livro reside no contraste que
estabelece entre a melancolia e nublado
português e a boa sombra e alegria
castelhana: uns, noitibós tristes,
e outros, pintassilgos alegres, [...] andam os portugueses à caça de uma
melancolia, e sonham os castelhanos de noite como poderão levar um bom dia.
Tomé Pinheiro Veiga, cujo espírito autonomista se revelou no próprio exercício
da magistratura, resistindo à aplicação de leis castelhanas, e que aderiu mais
tarde à Restauração, reage de modo por vezes sarcástico contra a constante
caricatura com que em Valhadolid é alvejado o seu Portugalete, quer em piropos
de castelhanas ou em alusões orais diversas, quer até em entremezes, denominados
portuguesadas, acerca de fanfarronices e sentimentalismos ridículos de tipos
fidalgos portugueses. No entanto, não se cansa de também criticar os
preconceitos e pechas da aristocracia nacional, à luz do que vê em Castela: a
brutal sujeição feminina (que vimos preconizada pela Carta de Guia de Casados);
a tola presunção provinciana de estirpe e o feitio brigão; a exibição sentimentalona,
a alternar com o gosto de falar de um modo obsceno; a falta de limpeza; o baixo
nível de convivência. O mais curioso é que o próprio autor se recorta, no
livro, como um obsessionado sentimental pelo belo sexo, rematando mesmo a
Segunda Parte por um longo encarecimento das sublimidades do amor freirático
que é difícil de tomar apenas como uma ironia, a não ser que funcione como auto-ironia.
Sob o ponto de vista literário, trata-se de uma das obras
mais notáveis do nosso século XVII, graças a uma prosa cheia de vivacidade, a
um extraordinário sentido de humor, ao seu equilíbrio entre a coloquialidade e
a erudição no sentido em que se orientavam já as obras de Jorge Ferreira
Vasconcelos. Outras obras seiscentistas de Memórias: o Diário (1731-33) do 4.º conde de
Ericeira, e o livro que Eduardo Brasão publicou no Porto, 1940, sob o título de D.
Afonso VI, atribuindo-o a António Sousa Macedo; o investigador
brasileiro Afonso Pena Júnior reivindica a autoria desta última obra para Pedro
Severim Noronha. É ainda como memorialistas que aqui se devem registar dois
homens que, além de Rodrigues Lobo, preceptista e antologista epistolográfico,
Francisco Manuel Melo, padre António Vieira e frei António Chagas, deixaram uma
significativa correspondência: Vicente Nogueira (1585-1654), clérigo muito culto, que, exilado em Roma, dá em
numerosas cartas ao marquês de Nisa informações bibliográficas, pareceres e
observações dos costumes da grande cidade; e José Cunha Brochado (1652-1735), a quem uma longa
missão diplomática em Paris proporcionou curiosas reflexões e comparações em
numerosas cartas, além de dois tomos de Memórias e anedotas da Corte de França».
In António J. Saraiva e Óscar Lopes, Prosa Memorialista de Seiscentos
(excerto), História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, FCG,
Lisboa, 2005, Halp 35, ISSN 1645-5169.
Cortesia de FCG/JDACT