«(…)
A pérfida acusação de ser um supertalento, persegui-o durante toda a vida: um
bonzo existencial atreveu-se a condená-lo por endemoninhado, como se o sofrimento daquele que é possuído pelo
espírito tivesse de causar a sua metafísica condenação à morte apenas pelo
facto de perturbar a simples e alegre relação tu-eu. E, contudo, Benjamin
evitava toda a violência com as palavras: a acutilância verbal era-lhe essencialmente
estranha. Na realidade suscitava ódio porque sem querer, sem nenhuma intenção
polémica, o seu olhar mostrava sempre o mundo usual no eclipse que é a sua luz
permanente. Apesar de tudo, o carácter incomensurável da sua natureza, incapaz
de ultrapassar os obstáculos com uma simples táctica e de defender o jogo de
sociedade próprio da república dos espíritos, permitiu-lhe ganhar a vida por
si, e sem nenhuma protecção, com o seu trabalho de ensaísta. Isto estimulou infinitamente
a agilidade da sua profundidade. Com um tal exercício aprendeu a demonstrar, com
um riso silencioso, a vacuidade das pretensões arcaicas da prima philosophia. Todas as suas manifestações se encontram à mesma
distância do ponto central. Os artigos dispersos pela Literarische Welt e na Frankfurter
Zeitung não são testemunho menor da sua persistente intenção do que os livros
e os extensos estudos da Zeitschrift für
Sozialforschung. Ele próprio seguiu a máxima da sua Rua de Sentido Único, todos os golpes decisivos são hoje assestados
com a mão esquerda, sem com isso abandonar o mínimo que fosse a exigência de
verdade. Até os jogos literários mais preciosistas são estudos para o chef-d’oeuvre, apesar da desconfiança
básica que tinha em relação a um tal género.
Enquanto
forma, o ensaio consiste na capacidade de contemplar aquilo que é histórico, as
manifestações do espírito objectivo, a cultura,
como se de algo natural se tratasse. Benjamin possuía, como poucos, uma tal
capacidade. Todo o seu pensamento podia ter o adjectivo de histórico-natural. Todos os elementos da cultura fossilizados,
congelados e envelhecidos, tudo aquilo que na cultura perdeu a doce força da vida
lhe falava tão directamente como ao coleccionador fala o animal petrificado ou
a planta do herbário. Entre os seus objectos favoritos havia várias dessas
esferas de vidro que contêm uma paisagem sobre a qual neva quando a esfera é
agitada. A expressão nature morte
poderia ser escrita nos gonzos da porta dos seus esconderijos filosóficos. Em
Benjamin têm uma posição essencial o conceito hegeliano de segunda natureza,
como objectivação de relações humanas alienadas em relação a si próprias, e a
categoria marxista do fetichismo da mercadoria. Aquilo que o atrai não é apenas
contemplar a vida fossilizada e despertá-la como na alegoria, mas também
considerar as coisas vivas fazendo-as surgir como passadas, pré-históricas para que elas cedam
imediatamente o seu significado. A filosofia apropria-se ela própria do
fetichismo da mercadoria: tudo tem que converter-se em coisa por artes mágicas,
de modo a que ela possa esconjurar o mal da coiseidade. Tão saturado de cultura
como objecto natural está este pensamento, que se conjura com a coiseidade
em vez de a ela se opor de modo irreconciliável. E essa a origem da tendência
de Benjamin para ceder a sua força espiritual ao que lhe é mais oposto, o que
exprime de modo mais radical no seu trabalho sobre A Obra de Arte na Era da sua
Reprodutibilidade Técnica. A sua filosofia possui um olhar de Medusa.
Se o conceito de mito ocupa nela um lugar central, como oposto de reconciliação
(especialmente na primeira fase teológica do seu pensamento, como tal por ele mesmo
reconhecida), tudo depressa se torna mítico para o seu pensamento, e antes de
mais o que é efémero. A crítica do domínio da natureza, programaticamente
anunciada no último fragmento da Rua de Sentido Único supera o
dualismo ontológico de mito e reconciliação: esta é o próprio mito.
Nesse processo de crítica seculariza-se o conceito de mito. A sua doutrina do
destino como culposa conexão do que é vivo, passa a sê-lo da culposa conexão da
sociedade: Enquanto existir um mendigo
existirá mito». In Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política,
introdução de T. W. Adorno, Antropos, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1992,
ISBN 972-708-177-0.
Cortesia
de Relógio D’Água/JDACT