O Atlântico da modernidade. A contribuição da África
(…) A escolha do Atlântico como tema central desta conferência
multidisciplinar permite analisar os últimos séculos da história deste oceano,
mola vital da mundialização de que tanto se fala nos nossos dias. Deve começar
por se dizer que foi graças ao Atlântico que oceanos como o Índico e o Pacífico
irromperam bruscamente na história do mundo moderno, homens, geografias,
mercadorias, fauna, flora, religiões. Mas este texto organiza-se também em
torno do papel privilegiado de Portugal na elaboração deste Atlântico: os portugueses
seriam assim os primeiros domadores
de um espaço selvagem, que se transformará, depois no espaço da modernidade. Há
já, muito que a historiografia portuguesa, com ou sem razão, mas muito
frequentemente sem rigor e antes por razões ideológicas e políticas, põe em
evidência um laço histórico e único existente entre Portugal e o Atlântico,
indispensável ao conhecimento do mundo moderno. Se retivermos as maneiras de
dizer do século XVI de acordo com as quais o essencial da sociedade e da
cultura portuguesas foi construído sobre as relações tão particulares como constantes
dos portugueses com o mar, como se os marinheiros portugueses fossem uma
espécie de camponeses que lavram o mar, podemos dar-nos conta da parte
portuguesa nesta construção de um Atlântico africano moderno. Mas devemos
também pôr em evidência o papel decisivo, quase sempre esquecido, dos construtores africanos do Atlântico dos
homens e das sociedades novas: o Atlântico das vagas e do medo torna-se o
Atlântico da modernidade, processo de mudança que devemos estudar ao longo da
história, tanto europeia como africana.
Este estudo tem como eixo principal as relações África-Atlântico. Estas
permitem proceder ao inventário e à análise das maneiras como os africanos instalam
ou reforçam as suas relações com a Europa, mas também com a Ásia e as Américas,
tornando-se estas relações complexas e constantes a plataforma indispensável ao
seu próprio destino, se bem que inseparável das escolhas e das opções da
própria espécie humana. Graças a este inventário
de problemáticas desejamos acima de tudo pôr em evidência as particularidades
estruturantes do Atlântico moderno, que derivam de iniciativas postas em
movimento pelos portugueses, considerados como uma espécie de agente da própria
Europa, durante cinco séculos de história do Atlântico (séculos XV-XIX), os
quais não agem nunca sós. É por isso necessário que sejam completados pelas contribuições
dos africanos. Pretendemos de facto denunciar uma visão constantemente redutora
das contribuições africanas, cujo carácter inovador e indispensável aparece
quando é necessário fornecer ou reforçar os elementos necessários à mudança.
A domesticação do Atlântico no século XVI
Para os africanos, mas também para os europeus, o mar ultrapassava amplamente
as fronteiras dos juízos correntes, marcado como estava por situações e até
personagens das quais não se sabia se eram miraculosas ou monstruosas, isto é,
se era necessário inscrevê-las na super-normalidade ou na super-inferioridade.
Os conhecimentos modernos remeteram as formas especificamente teratológicas para
o campo dos mitos, os quais também permitiam desenhar o mapa actual que
autoriza a dar conta da maneira como o Atlântico pode alargar a sua presença». In
Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África
séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História,
2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
Cortesia de Caleidoscópio/JDACT