quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Abóboras no Telhado. Polémica e Crítica. Aquilino Ribeiro. «Também me minguava a pachorra. A pachorra e o tempo. O ‘rat de bibliotèque’ é um bicho especial que tem por si a eternidade e uma sorte de pulmões de pescador de pérolas. ‘Podia, não podia?’ Não sei. Naturalmente, estava fora da esfera a natureza do seu artesanato»

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Uma aventura Literária
«(…) Missanga, é possível. A obra, uma vez realizada, parece fácil. Não é tão fácil como isso. A figura do Cavaleiro estava, de facto dentro dos seus livros, como os Lusíadas estão dentro do dicionário de Morais. Tudo vai em acertar o mosaico, em que cooperam engenho, inteligência e saber. A figura do Cavaleiro, social, vivedoira, com os seus cinco sentidos, aquela sua agilidade de pintalegrete, estava de pé e, embora com as suas sombras esfumadas, era palpite meu que não era nenhum manequim convencional, nenhuma personagem do Museu Grévin siderada aos olhos do espectador. Entretanto Jordão Freitas, um operoso garimpeiro de tombos, começou a publicar, ipsis verbis, no jornal a Época, documentos exumados dos arquivos, concernentes ao Cavaleiro. Eram todos de essência oficial e reportavam-se à sua actividade em tanto que empregado de secretaria, na embaixada de Viana, ao serviço do conde de Tarouca. Além destes, transcritos na sua secura tabelionar, poucos mais, e todos procedentes dos cartórios e arquivos públicos como fica dito, publicou Jordão Freitas. Aconteceu porém que veio a lume nos jornais diários o programa cultural da Biblioteca. Como nesse programe se anunciasse o meu trabalho sobre o Cavaleiro de Oliveira, Jordão Freitas, a fugir à contingência de ser ultrapassado na publicação dos documentos, deu-se a publicá-los à lufa-lufa, ou pelo menos mais aceleradamente do que até ali. Tal conjuntura vinha favorecer os meus desígnios.
Nunca eu pensara em disputar-lhe a -glória de pioneiro. A velha papelada, com suas surpresas esplêndidas embalsamadas em bolor e miasmas, nunca me seduziu. Também me minguava a pachorra. A pachorra e o tempo. O rat de bibliotèque é um bicho especial que tem por si a eternidade e uma sorte de pulmões de pescador de pérolas. Respira na poeira dum sótão como o mergulhador no fundo do mar. Para e1e, a suprema volúpia é furar através de papéis arrumados desde o princípio dos princípios, por mão em fantasmas. Um múnus assim tem o seu quê dos limpa pára-raios. Há uma data a rectificar: … pois, senhores, não foi em 6 de Fevereiro de 1164 que se deu a batalha dos Chifres Esmurrados; foi em 7 de Janeiro. A prova é que..., o marechal do Chuço em Riste tivera na véspera um desaguisado sério..., etc., etc. Há que chumaçar a vida dum grande macabeu, dum apóstolo dos negrinhos da Guiné, dum navegador antártico?... Desmonta os maços pulverulentos dos armários, percorre os cartários das sacristias, folheia quantos armoriais os velhos fidalgos, desde Atanagildo, mandaram lavrar por seus capelães. E acaba por encontrar o pábulo precioso. Não raciocina como a gente de cuidados raciocina. Tem outra tábua de valores mentais.
João Freitas era destes. A sua biografia do marquês de Pombal não começa assim : … duas datas importantes há a considerar na vida deste estadista: a do seu nascimento e a da sua morte. O movimento de sofreguidão era mais que razoável. Observar-se-á: … Jaime Cortesão podia ter confiado a Jordão Freitas o encargo de fazer o referido trabalho... Podia, não podia? Não sei. Naturalmente estava fora da esfera de Jordão Freitas, dado que não superasse a natureza do seu artesanato. Este era particularmente um sacerdote de Hermes Trimegista, um verificador de mausoléus. E o que interessava no Cavaleiro não era o autor das Cartas nem do Amusement, livros de terceira ordem, plagiados noventa por cento, e, quanto a espírito, como muitos outros que vieram a lume nesse espiritual e sacripanta século XVIII». In Aquilino Ribeiro, Abóboras no Telhado, Polémica e Crítica, Livraria Bertrand, Lisboa, 1955.

Cortesia da LBertrand/JDACT