quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O Mundo Perdido de Calaári. Laurens van der Post. «Tens em troca órfãos e órfãs tens campos de solidão. Tens mães que não têm filhos, filhos que não têm pai. Coração que tens e sofre longas ausências mortais. Viúvas de vivos mortos que ninguém consolará»

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O Povo Desaparecido
«(…) O meu piedoso avô explicava que esta pele solta e plástica era uma sábia concessão de Providência Toda-poderosa para lhe permitir comer mais num só festim do que jamais algum homem tinha comido na história da humanidade. A sua vida de caçador tornava de vital importância que ele pudesse armazenar no corpo grandes reservas de alimento. O resultado era que o estômago, depois de ter comido até os limites da sua capacidade, dava-a qualquer homem o aspecto duma mulher grávida. Numa boa época de caça, a sua silhueta era como a dum Cupido de Rubens, rotunda à frente e mais ainda atrás. Sim, era essa mais uma das características únicas desse pequeno e original corpo bochimane. O seu traseiro era aquilo que a corcova é para o camelo! Assim a natureza lhe permitia armazenar uma reserva de valiosas gorduras e hidratos de carbono, contra os momentos de fome e de sede. Creio que o primeiro termo científico que jamais aprendi foi o nome que os anatomistas deram a este fenómeno do corpo bochimane: esteatopigia. Lembro-me de uma noite, junto do lume, ouvir dizer ao meu avô e à mais velha das minhas tias que, em época de penúria, o traseiro do Bochimane encolhia até se parecer muito com qualquer outro, excepto pelas pregas acetinadas que apresentava no sítio onde as nádegas se juntavam às pernas ágeis. Durante uma boa estação de caça, porém, esticava tanto, que se podia pôr-lhe em cirna uma garrafa de conhaque e um copo! Todos ríamos disto, não por troça, mas com afectuoso orgulho e espanto por a nossa terra natal ter produzido um corpo humano tão excepcional.
Seja como for, o meu coração e a minha imaginação preocupavam-se fortemente com este assunto da forma do Bochimane. Os Hotentotes, que se pareciam muito com ele, não conseguiam, por muito que eu gostasse deles, excitar o meu espírito da mesma forma. Eram demasiado grandes. O Bochimane era como devia ser. Havia magia na sua constituição. Sempre que a minha mãe nos lia uma história de fadas em que um homem baixo realizava maravilhas, logo a minha imaginação o transformava num bochimane. Talvez que esta nossa vida, que começa com a procura do homem pela criança e acaba como uma viagem feita pelo homem para redescobrir a criança, precise duma imagem clara de algum homem-criança, como o Bochimane, em que os dois estão firme e encantadoramente ligados, para que os nossos corações confusos possam permanecer no centro da sua breve rota de partida e regresso». In Laurens van der Post, The lost world of the Kalahari, O Mundo Perdido de Calaári, edição Livros do Brasil, Lisboa.


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