Viriato. O nosso avô
«(…) Nos primeiros alvores da manhã radiosa o esquadrão de bandoleiros
caía sobre a pequena cidade, confiadamente adormecida sob as brisas tépidas do
mar, com vilas brancas, casas de campo de hispanos latinizados, lojas de quincalharia,
armazéns, columbários, e levavam tudo raso. Ao que podiam deitar mão, deitavam;
se os habitantes reagiam alçava.-se no ar o cutelo ou a espada. Manhã fora,
tropeavam as coortes romanas nas ruas da localidade posta a saque. Bandoleiros? Já lá eram levados
de rédea abatida, a caminho de seus valhacoitos nos fragoais das serras. Como
resgatar as ricas terras, com seus colonos fiéis, seus romanos sibaritas, deste pesado tributo de bens e de vidas?
Como pôr cobro ao pesadelo? Os
romanos organizaram expedições sumptuosas e, de par e passo, pelo ferro e pelo
fogo, pelo afago e pela blandícia procuraram correr com os abutres da
montanha.. A montanha era o reparo infernal; a montanha era o inçadoiro. Oh,
quem pudesse arrasá-las com seus penedais, seus barrocos, seus desfiladeiros,
seus covões, e estava resolvido para os romanos o problema da colonização
ibérica!
Como se chamava, antes da imposição das vírias, esse homem que deu água pela barba aos pretores e cônsules de Roma?
É possível que a essa data já houvesse um onomástico pessoal. Segundo explicam
os etnólogos, estes nossos nomes corriqueiros foram pedidos ao facto ou à coisa
rnais relevante na existência dos indivíduos. Fulano chamou-se de Carvalho em virtucle
de qualquer circunstância, efémera ou intemporal, o haver associaclo àquela
árvore, imprimindo-lhe momentâneo relevo. Igualmente o nome de Lobo assentaria àquele
cuja existência uma destas feras fortuitamente ilustrasse. Os homens, em regra,
chamavam-se pelo prenome que não pelo apelido. E a origem dos prenomes? O apelido é já uma distinção. Nas
sociedades primitivas eram todos iguais, como hoje nas aldeias todos são tios.
Aquele que mais tarde entrou na História com a designação de Viriato teria
antes um nome comum, dado que os homens da tribo fossem designados por mais que
o epíteto gentílico. O facto da designação singular dar-se-ia exclusivamente
com ele e com os homens de prol, isto é, aqueles que se salientassem por dotes
pessoais ou feitos de distinção. O nosso léxico de patronímicos releva mais que
tudo do germânico e do latim. Onde estão
os apelativos de origem hispânica, celtibéricos, turdetanos ou vasconços?
O homem desenganado e resoluto que a tribo julgou digno das vírias, chamasse-se
como se chamasse, a partir da imposição não teve outro nome: viriato. Viriato quer dizer, investido
com as vírias, como um monarca
pela graça de Deus. De certo era a mais alta dignidade conferida por aquele
povo, pastores honrados na tribo e piratas temíveis na terra alheia. Vírias eram grandes argolas de
metal, tantas vezes de oiro, com que guarneciam o braço que segurava a espada
ou que ornavam a perna dos cavaleiros. Divisas do comando, com significação
gradual talvez, representavam simultâneamente o emblema de um posto, um enfeite
e ainda um emparo contra a lança e a espada. Algumas, pelo diâmetro, só podiam
destinar-se à coxa; outras, pela largura da banda, equivaliam a um pequeno
broquel para o braço.
Pela sua grossura, uma vez enfiadas na perna e apertadas com uma
martelada ou pressão nas duas pontas, mantinham a rigidez, cinginclo o fémur
como uma precinta. Já as vírias
do braço eram uma. espécie de anilhas que se introduziam pela mão. Todos os guerreiros podiam trazê-las ou
eram apanágio exclusivo dos capitães? Ao seu número andava adstrita a
ideia de patente, ou a investidura pública das vírias era como que uma
formaliclade graciosa, complementar, da aclamação? É possível que com o
tempo o nome de Viriato tenha acabado por degenerar na Lusitânia para um trivialíssimo
patronímico. Nas legendas das lápides, com efeito, citam-se muitos e vários Viriatos.
Mas tudo leva a crer que de princípio se tratasse do guerreiro que recebia as
insígnias de capitão-general. As vírias
seriam as suas dragonas. Na Punica, Caio Sílio Itálico celebra a
morte de Viriato, comandante dos lusitanos, caído na batalha de Canas». In
Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do
Brasil, Lisboa, 1952.
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