sábado, 29 de novembro de 2014

Viriato. O nosso avô. Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias. Aquilino. «Como se chamava, antes da imposição das vírias, esse homem que deu água pela barba aos pretores e cônsules de Roma? É possível que a essa data já houvesse um onomástico pessoal. Os homens, em regra, chamavam-se pelo prenome que não pelo apelido. E a origem dos prenomes?»

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Viriato. O nosso avô
«(…) Nos primeiros alvores da manhã radiosa o esquadrão de bandoleiros caía sobre a pequena cidade, confiadamente adormecida sob as brisas tépidas do mar, com vilas brancas, casas de campo de hispanos latinizados, lojas de quincalharia, armazéns, columbários, e levavam tudo raso. Ao que podiam deitar mão, deitavam; se os habitantes reagiam alçava.-se no ar o cutelo ou a espada. Manhã fora, tropeavam as coortes romanas nas ruas da localidade posta a saque. Bandoleiros? Já lá eram levados de rédea abatida, a caminho de seus valhacoitos nos fragoais das serras. Como resgatar as ricas terras, com seus colonos fiéis, seus romanos sibaritas, deste pesado tributo de bens e de vidas? Como pôr cobro ao pesadelo? Os romanos organizaram expedições sumptuosas e, de par e passo, pelo ferro e pelo fogo, pelo afago e pela blandícia procuraram correr com os abutres da montanha.. A montanha era o reparo infernal; a montanha era o inçadoiro. Oh, quem pudesse arrasá-las com seus penedais, seus barrocos, seus desfiladeiros, seus covões, e estava resolvido para os romanos o problema da colonização ibérica!
Como se chamava, antes da imposição das vírias, esse homem que deu água pela barba aos pretores e cônsules de Roma? É possível que a essa data já houvesse um onomástico pessoal. Segundo explicam os etnólogos, estes nossos nomes corriqueiros foram pedidos ao facto ou à coisa rnais relevante na existência dos indivíduos. Fulano chamou-se de Carvalho em virtucle de qualquer circunstância, efémera ou intemporal, o haver associaclo àquela árvore, imprimindo-lhe momentâneo relevo. Igualmente o nome de Lobo assentaria àquele cuja existência uma destas feras fortuitamente ilustrasse. Os homens, em regra, chamavam-se pelo prenome que não pelo apelido. E a origem dos prenomes? O apelido é já uma distinção. Nas sociedades primitivas eram todos iguais, como hoje nas aldeias todos são tios. Aquele que mais tarde entrou na História com a designação de Viriato teria antes um nome comum, dado que os homens da tribo fossem designados por mais que o epíteto gentílico. O facto da designação singular dar-se-ia exclusivamente com ele e com os homens de prol, isto é, aqueles que se salientassem por dotes pessoais ou feitos de distinção. O nosso léxico de patronímicos releva mais que tudo do germânico e do latim. Onde estão os apelativos de origem hispânica, celtibéricos, turdetanos ou vasconços? O homem desenganado e resoluto que a tribo julgou digno das vírias, chamasse-se como se chamasse, a partir da imposição não teve outro nome: viriato. Viriato quer dizer, investido com as vírias, como um monarca pela graça de Deus. De certo era a mais alta dignidade conferida por aquele povo, pastores honrados na tribo e piratas temíveis na terra alheia. Vírias eram grandes argolas de metal, tantas vezes de oiro, com que guarneciam o braço que segurava a espada ou que ornavam a perna dos cavaleiros. Divisas do comando, com significação gradual talvez, representavam simultâneamente o emblema de um posto, um enfeite e ainda um emparo contra a lança e a espada. Algumas, pelo diâmetro, só podiam destinar-se à coxa; outras, pela largura da banda, equivaliam a um pequeno broquel para o braço.
Pela sua grossura, uma vez enfiadas na perna e apertadas com uma martelada ou pressão nas duas pontas, mantinham a rigidez, cinginclo o fémur como uma precinta. Já as vírias do braço eram uma. espécie de anilhas que se introduziam pela mão. Todos os guerreiros podiam trazê-las ou eram apanágio exclusivo dos capitães? Ao seu número andava adstrita a ideia de patente, ou a investidura pública das vírias era como que uma formaliclade graciosa, complementar, da aclamação? É possível que com o tempo o nome de Viriato tenha acabado por degenerar na Lusitânia para um trivialíssimo patronímico. Nas legendas das lápides, com efeito, citam-se muitos e vários Viriatos. Mas tudo leva a crer que de princípio se tratasse do guerreiro que recebia as insígnias de capitão-general. As vírias seriam as suas dragonas. Na Punica, Caio Sílio Itálico celebra a morte de Viriato, comandante dos lusitanos, caído na batalha de Canas». In Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do Brasil, Lisboa, 1952.

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