domingo, 9 de novembro de 2014

O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa. Álvaro Manuel Machado. «Ora, esta ambiguidade do conhecimento, que em Erasmo faz parte da própria procura individualista e humanista da raiz cristã e clássica, permite um contacto, ainda que velado e não explícito, com a cultura, ou melhor, “as” culturas orientais»

Cortesia de wikipedia

Os mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo.

Oriente e mitologia dos Descobrimentos. De João de Barros a Bocage
O Renascimento. O Humanismo europeu e o Oriente
«(…) Poderíamos até evocar, no plano geral da visão cosmológica, as teorias herméticas de Giordano Bruno, as quais, como nota uma especialista na matéria, Frances Yates, em The Art of Memory, muito devem à tradição oriental: Chez les Egyptiens, les Babyloniens, les Druides, les Persans et les Mahométans, les contemplatifs ont réalisé les contractions les plus profondes. Car c’est une seule et meme faculté psychique qui travaille sur les choses basses comme sur les choses élevées et c’est elle qui a produit tous les grands chefs religieux et leurs pouvoirs miraculeux. Et Giordano Bruno se présente comme l’un de ces chefs; il offre une religion, une expérience hermétique, un culte initiatique intérieur (…). Dans la transformation occulte qu’en propose Giordano Bruno, l’art de la mémoire est devenu une technique magicoreligieuse, un moyen de s’unir à l âme du monde, dan la mesure où il est une partie d’un culte initiatique et hermétique. Sobretudo, devemos ter presente o facto de, quer a nível da ideia de natureza quer a nível da ideia de história, o regresso ao mundo ideal greco-latino se processar em termos de uma consciencialização espiritual que, se recusava a teologia medieval, nas mais elevadas expressões da cultura humanista, se limitava a imitar o antigo paganismo. Há uma distância perante a Antiguidade que aos poucos se vai assumindo como necessidade vital do próprio ideal humanista. Essa distância implica principalmente uma mise en question geral dos dados éticos do cristianismo, atitude patente, por exemplo, num Erasmo, cujo regresso às fontes cristãs através da cultura clássica, desde Enchiridion militis christiani (1504) ao Elogio da Loucura (1509), acaba por levá-lo a uma visão do mundo que em última análise permanece extremamente  ambígua. Como diz um dos maiores especialistas de Erasmo e do humanismo renascentista, o historiador holandês Huizinga, ao concluir sobre o pensamento de Erasmo relativamente à herança clássica, por um lado, e às fontes cristãs por outro. Erasme paraît avoir adopté à l’égard du monde une attitude pleine de réserve […] Elle est due […] à la conscience du caractère impénétrable de l’essence de toutes choses, au respect de l’ambiguité de tout ce qui existe.
Ora, esta ambiguidade do conhecimento, que em Erasmo faz parte da própria procura individualista e humanista da raiz cristã e clássica, permite um contacto, ainda que velado e não explícito, com a cultura, ou melhor, as culturas orientais genericamente falando. Pelo menos, ela proporciona uma curiosidade, uma vontade de descoberta, mais: uma paixão da descoberta, paixão paralela à experiência. E, em Portugal, a história dos Descobrimentos, para lá das óbvias razões político económicas, é em grande parte o resultado prático dessa passional curiosidade humanista pelo que era estranho a esse homem ocidental, produto das heranças clássica e cristã.

Descobrimentos. Classicismo e Mito do Longínquo. João de Barros
Em pleno período dos Descobrimentos portugueses, é curioso notar o contraste formado pelas atitudes de dois historiadores e humanistas contemporâneos perante o Oriente em geral: Damião de Góis e João de Barros. Apesar de Damião de Góis ter nascido um pouco depois de João de Barros, analisemos primeiro a sua atitude, até porque João de Barros, dada a amplitude da sua obra de historiador extremamente fascinado pelo Oriente, será o exemplo básico escolhido para esta abordagem inicial do que de mítico contém a nossa literatura relativamente ao Oriente. Nascido em Alenquer, em Fevereiro de 1502, Damião de Góis é o cosmopolita típico do nosso século XVI, europeu mas voltado para todas as civilizações. Vitorino Nemésio chama-lhe com razão europeu de Alenquer, acrescentando quanto à sua curiosidade extra-europeia, no estilo desenvolto que a sua erudição nunca dispensava: […] deliciou-se a descrever as esquisitices dos chins e a Fé, Religião e Costumes dos Etíopes. O cosmopolitismo estava-lhe na massa do sangue. Em pequeno, criado no paço à beira de um irmão mais velho, que era ali guarda-roupa, em vez de brincar com porquinhos e galinhas, como os garotos de Alenquer faziam nos lamaçais do Tejo, assistia a combates de um elefante com um rinoceronte… Pajem de Manuel I, Damião de Góis foi secretário da Feitoria Portuguesa em Antuérpia, tendo também cumprido missões diplomáticas na Polónia, na Alemanha, na Itália e nos países escandinavos. As suas andanças políticas são paralelas ao convívio com os grandes da sua época: Erasmo, Lutero, Dürer, além de Carlos V, Francisco I, Henrique VIII, o papa Paulo III, etc.. Daqui derivou para Damião de Góis um prestígio internacional que lhe valeu, quando do regresso a Portugal, ser nomeado guarda-mor da Torre do Tombo e Mestre do Infante». In Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve, Conselho da Europa, Lisboa, 1983.

Cortesia de ICamões/JDACT