Não há melhor fragata do que um
livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson
«(…) A manhã era o melhor momento do dia para testemunhar os costumes
dos moradores do prédio, hábito que depois se prolongava durante a tarde e
parte da noite num plano de fina intuição, já no silêncio da sua casa, onde
Alberto Reis registava num caderno todos os sons estranhos que ouvia,
exaustivamente fundamentados com anotações das horas, das pausas e dos
movimentos, como se fosse o único espectador numa sala escura a descodificar
representações teatrais privadas. Desta forma, toda a informação que o polícia
reformado registava e lhe servia de recurso a eventuais falhas de memória revelava
o profissional que fora e ilustrava, não sem algum exagero, as suas distintas
competências na captação de rotinas domésticas.
A senhora Ofélia era uma mulher baixa e magra, de modos excêntricos.
Cinquentona, usava um corte de cabelo que lhe dava um aspecto masculino.
Solteira e ruidosa, tinha um olhar autoritário e um tom de voz intimidante e
provocatório. A esse respeito, Alberto Reis já experimentara o enfurecimento da
mulher quando, durante uns tempos, alimentou a ideia de que talvez fosse agradável
o convívio com ela, e diversas tentativas se sucederam nesse sentido, por via
de uma relação de confiança e simpatia razoáveis, com o intuito de fazer parte
do grupo restrito de pessoas que uma vez por semana frequentavam a casa da
senhora Ofélia, onde se reuniam até de madrugada, falavam alto e dançavam num
frenesim adolescente e com um espírito boémio que estimulava a percepção
intuitiva de Alberto Reis, cismático como uma toupeira no labirinto da sua toca.
No entanto, o mais que conseguira alcançar no terreno íntimo e privado fora uma
chamada de emergência para reparar um problema eléctrico no candeeiro de tecto
do quarto de dormir da senhora Ofélia. Embora o convite estivesse longe do
prazer que ansiava nos seus exercícios de imaginação, Alberto Reis viu nele uma
oportunidade e um bom começo para sentir a textura daquele ambiente nocturno,
tão intenso e carnal, supunha, e tão arrebatador, reactivo e ilícito. Na
verdade, era como se a sua imaginação tivesse cheiro e ele fosse um cão de caça
por ali a farejar objectos, recantos dúbios, bocados de lixo, papéis e livros,
restos de bebida nos copos, e, à conta destas pistas que em nada contribuíam
para a boa imagem doméstica da senhora Ofélia, considerando que a falta de
asseio combinava com o mesmo nível de comportamento dos convidados, Alberto
Reis percebesse que naquela casa reinava também uma espécie de poluição
intelectual inteiramente focalizada na histeria e no deboche.
Naquela tarde consertara o candeeiro do tecto, mudando algumas lâmpadas
que estavam fundidas e isolando dois fios, negativo e positivo, que se
encontravam em indução, motivo por que as lâmpadas estoiravam assim que o
interruptor era ligado. Por esta altura, a senhora Ofélia permanecia na cozinha
a vigiar uma chaleira de água que fervia no fogão. Estava a pensar que seria
educado partilhar uma chávena de chá com o seu prestável vizinho. Conseguia
escutar o tilintar dos pingentes e o assobio fino e arrepiante das lâmpadas a
serem enroscadas nos casquilhos, e isso dava-lhe uma sensação de prazer e
segurança. Por vezes, quando o silêncio se prolongava, levantando suspeitas
sobre as regras disciplinares da confiança, a senhora Ofélia ia até ao corredor
e espreitava pela porta aberta do quarto o tempo suficiente para se tranquilizar
e apreciar o sucesso dos serviços prestados pelo seu vizinho servente. Por
outro lado, Alberto Reis sabia que estava a ser vigiado e compreendia que no lugar
dela faria o mesmo. A sua experiência alertava-o para o facto de que em lado
nenhum seria digno de confiança, porque, no fundo, por mais decentes que sejamos,
roubamos com os olhos tudo o que pertence aos outros.
Precisamente por esse mesmo nível de propriedade, Alberto Reis já tinha
no seu ficheiro visual um estranho bigode postiço que se encontrava colocado em
cima da cómoda. De facto, perto dele estava também um par de óculos cujo modelo
lhe era familiar. Impulsionado pelo facto de aqueles dois objectos lhe
transmitirem uma curiosidade difícil de suportar, Alberto Reis decidiu
aproximar-se, sentindo a verdadeira paranóia da suspeição, e, a partir dessa
especialidade que consiste em procurar uma explicação para cada fim
determinado, tentou assegurar-se das razões que legitimavam a presença desses objectos
no quarto de uma senhora. Foi precisamente nesse momento de labor policial e
distracção que a senhora Ofélia surpreendeu Alberto Reis com os óculos nas mãos.
Em pouco tempo, o prestável homem que servira irrepreensivelmente o Estado e
que agora se dedicava ao voluntariado de serviços domésticos pela vizinhança passou
de pessoa leal e confiável a um miserável suspeito indesejado». In
Fernando Esteves Pinto, O Carteiro de Fernando Pessoa, Baía dasPalavras, Edições
Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98521-0-5.
Cortesia de Parsifal/JDACT