sexta-feira, 14 de novembro de 2014

História da Vida Privada em Portugal José Mattoso. «A matriz individualista do direito português reflecte-se na reforma jurídica do século XIX, estando consagrada no Código Civil de 1867, também conhecido por Código Seabra. Encerrando uma visão individuocêntrica do mundo do direito»

jdact

A época contemporânea. Introdução
Sob o olhar da história: da vida privada família à vida privada individual (1820-1950)
«(…) A Revolução de 24 de Agosto de 1820, ao estabelecer um novo sistema jurídico-constitucional, fundamentado na existência de um governo representativo e na separação dos poderes, marcou uma viragem no modo de conceber e de viver em sociedade, tendo feito emergir a consciência de cidadania. No que toca à matéria que se tem vindo a desenvolver, o Estado constitucional liberal deu sentido emancipador à condição de cidadão, ao consagrar direitos e garantias individuais, de cuja preservação dependia a felicidade pública, e que, em última instância, favorecia a autonomização de uma esfera privada na sociedade civil. Um dos princípios estruturantes da constituição de 1822, definido logo em 1821 pelas Cortes Extraordinárias e Constituintes, é precisamente o de salvaguarda dos direitos e deveres individuais dos portugueses, enfatizando-se os de liberdade, segurança e propriedade.
Reconhecem-se garantias materiais e processuais no âmbito do direito criminal, bem como no campo do direito da propriedade, proclamado como sagrado e inviolável. O mesmo princípio da inviolabilidade se aplica à correspondência e ao domicílio, afirmando-se que a casa de todo o português é para ele um asilo, onde nenhum oficial público poderá entrar (...) sem ordem escrita da competente autoridade (...). Da linguagem simbólica do texto constitucional infere-se a sacralização do espaço doméstico, fazendo-o absorver a ancestral tradição religiosa do direito de asilo do cristianismo medieval, incorporação que vai ao encontro das reflexões de Benjamin Constant, para quem a vida privada era uma espécie de refúgio à margem da vida pública, como atrás se referiu. A casa é o domínio privado, por excelência, o fundamento material da família, pilar da ordem social. Da convocação da linguagem religiosa, reutilizada ao serviço da propaganda revolucionária, pode extrair-se a necessidade de legitimação ideológica do novo discurso, por meio de um paradigma histórico purificado pelo tempo.
A matriz individualista do direito português reflecte-se na reforma jurídica do século XIX, estando consagrada no Código Civil de 1867, também conhecido por Código Seabra. Encerrando uma visão individuocêntrica do mundo do direito, todas as suas disposiçoes, como afirma Mário Reis Marques, giram à volta do sujeito de direito e da sua capacidade de acção. O lugar central ocupado pelos direitos individuais no Estado liberal traduz a importância assumida pelo sentimento de identidade individual na nova sociedade, o qual se difunde ao longo do século XIX, precipitando-se nas últimas décadas. Balizados por novos marcos jurídicos, os costumes privatizam-se, aprofunda-se a exploração do eu, reforça-se a identidade pessoal, renova-se o conceito de espaço privado, o qual reveste competências que pertenciam anteriormente à esfera pública.
A irrupção do individualismo na sociedade oitocentista, ou, na opinião de alguns autores, a forte investida do indivíduo, pode medir-se pelo desenvolvimento tomado por novas práticas e comportamentos até à II Guerra Mundial, que farão emergir, no contexto do círculo familiar, um espaço cada vez maior da intimidade pessoal. Sublinhem-se as preocupações com a antroponímia; a prática cada vez mais divulgada da leitura solitária do jornal à medida que avança a alfabetização das massas populares, o alargamento do ensino público e a difusão do movimento jornalístico após 1834; a expansão da fotografia e a democratização do retrato; os cuidados com a aparência e os progressos do asseio». In José Mattoso, História da Vida Privada em Portugal, A Época Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2011, ISBN 978-989-644-149-4.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT