A época contemporânea. Introdução
Sob o olhar da história: da vida privada família à vida privada
individual (1820-1950)
«(…) A Revolução de 24 de Agosto de 1820, ao estabelecer um novo sistema
jurídico-constitucional, fundamentado na existência de um governo
representativo e na separação dos poderes, marcou uma viragem no modo de
conceber e de viver em sociedade, tendo feito emergir a consciência de cidadania.
No que toca à matéria que se tem vindo a desenvolver, o Estado constitucional
liberal deu sentido emancipador à condição de cidadão, ao consagrar direitos e
garantias individuais, de cuja preservação dependia a felicidade pública, e
que, em última instância, favorecia a autonomização de uma esfera privada na
sociedade civil. Um dos princípios estruturantes da constituição de 1822, definido logo em 1821 pelas Cortes Extraordinárias e Constituintes, é precisamente o de
salvaguarda dos direitos e deveres individuais
dos portugueses, enfatizando-se os de liberdade,
segurança e propriedade.
Reconhecem-se garantias materiais e processuais no âmbito do
direito criminal, bem como no campo do direito da propriedade, proclamado como sagrado e inviolável. O mesmo princípio
da inviolabilidade se aplica à correspondência e ao domicílio, afirmando-se que
a casa de todo o português é para ele um
asilo, onde nenhum oficial público
poderá entrar (...) sem ordem escrita da competente autoridade (...). Da
linguagem simbólica do texto constitucional infere-se a sacralização do espaço
doméstico, fazendo-o absorver a ancestral tradição religiosa do direito de asilo do cristianismo
medieval, incorporação que vai ao encontro das reflexões de Benjamin Constant,
para quem a vida privada era uma espécie
de refúgio à margem da vida pública, como atrás se referiu. A casa é o domínio
privado, por excelência, o fundamento material da família, pilar da ordem
social. Da convocação da linguagem religiosa, reutilizada ao serviço da
propaganda revolucionária, pode extrair-se a necessidade de legitimação
ideológica do novo discurso, por meio de um paradigma histórico purificado pelo
tempo.
A matriz individualista do direito português reflecte-se na
reforma jurídica do século XIX, estando consagrada no Código Civil de 1867,
também conhecido por Código Seabra. Encerrando uma visão individuocêntrica do mundo do direito, todas as suas
disposiçoes, como afirma Mário Reis Marques, giram à volta do sujeito de direito e da sua capacidade de acção. O
lugar central ocupado pelos direitos individuais no Estado liberal traduz a
importância assumida pelo sentimento de identidade individual na nova
sociedade, o qual se difunde ao longo do século XIX, precipitando-se nas
últimas décadas. Balizados por novos marcos jurídicos, os costumes
privatizam-se, aprofunda-se a exploração
do eu, reforça-se a identidade pessoal, renova-se o conceito de espaço
privado, o qual reveste competências que pertenciam anteriormente à esfera
pública.
A irrupção do individualismo na sociedade oitocentista, ou,
na opinião de alguns autores, a forte
investida do indivíduo, pode medir-se pelo desenvolvimento tomado por novas
práticas e comportamentos até à II Guerra Mundial, que farão emergir, no
contexto do círculo familiar, um espaço cada vez maior da intimidade pessoal. Sublinhem-se
as preocupações com a antroponímia; a prática cada vez mais divulgada da
leitura solitária do jornal à medida que avança a alfabetização das massas populares,
o alargamento do ensino público e a difusão do movimento jornalístico após 1834; a expansão da fotografia e a
democratização do retrato; os cuidados com a aparência e os progressos do
asseio». In José Mattoso, História da Vida Privada em Portugal, A Época
Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de Leitores e Temas e Debates,
2011, ISBN 978-989-644-149-4.
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