domingo, 16 de novembro de 2014

Memórias da Grande Guerra. Jaime Cortesão. «Os dois poetas lusitanos, epónimos das duas nações, sagram com a sua assistência o acto ingénuo da turba. Irá então reatar-se o ciclo truncado das nossas lutas épicas? Irá cumprir-se a profecia de Edgard Quinet?»

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O Génio do Povo
Março de 1916
«(…) Mazina, Kuangar, Naulila... Nomes que soam como bofetadas. Depois hesita-se, disputa-se, combate-se. Já a face arrefece. Alguns querem mesmo oferecer a outra. Mais um passo: requisitam-se os navios... E a hora grande bateu: estala a declaração da Alemanha. Na Câmara a sala, de pé, desde as carteiras até às galerias, ao formigueiro humano, delira e aclama, com uma só boca: Viva a República! Viva a guerra! As almas abriram caminho dumas para as outras e a emoção de cada um multiplica-se pelo entusiasmo frenético da turba. Ao meu lado este grande Gavroche, que passou a vida a rir e a descrer, tem os olhos afogados em lágrimas. Uma voz vai erguer-se talvez com fria dúvida, mas a onda de fogo tudo engole.
Uma seriedade nova vinca as frontes e põe labaredas nos olhos. Comungamos a Pátria; somos em estado de graça. Não durmo nessa noite. É um diálogo entre mim e a consciência. Decido oferecer-me para partir, e ao dia seguinte, em carta ao Ministro da Guerra, Norton de Matos, declaro-lhe sacrificar a essa grande obrigação os sagrados deveres de família, pois entendo que esta guerra terá para o bem da Humanidade consequências tamanhas, quais ninguém mesmo pode prever desde já. Por terras de Portugal, nas cidades, o povo ergue-se ao grito de guerra. Em Lisboa uma multidão imensa vai à Câmara Municipal manifestar ao Chefe do Estado o seu apoio. Céu azul-rútilo. Dia de apoteose na Terra e nas almas. Olavo Bilac, o grande poeta brasileiro, assiste ao desfilar da multidão e do alto duma varanda saúda o povo que o aclama. Ao sair do Palácio do Município, na carruagem presidencial, além do ministro inglês e do Chefe do Governo, A. J. d’Almeida, vai também Guerra Junqueiro. Os dois poetas lusitanos, epónimos das duas nações, sagram com a sua assistência o acto ingénuo da turba. Irá então reatar-se o ciclo truncado das nossas lutas épicas? Irá cumprir-se a profecia de Edgard Quinet? Quando ele, em 1845, visitava Portugal, dizia de nós: Dans le silence qui les environne, ces hommes ont l’air de continuer la bataille autour du corps du roi Sebastien.
E acrescentava: Et pourtant, malgré cet engourdissement mortel, je jurerai que le feu moral couve encore quelque part. Cette terre recommencera, de trembler et de jeter des éclairs. Em verdade, a nossa vida, há um século, denuncia-se apenas por isolados clarões de relâmpago. Esta nação, mal lhe roubaram a escota e a espada, que descobriu e avassalou meio mundo, ficou-se para aí abismada na contemplação da sua última aventura heróica. O pensamento da sua independência ainda a levanta para resgatar a liberdade, e, apenas quando a afrontam no seu brio, estremece e ergue-se toda ela, fulgurada pela mesma raiva: é na aurora e no ocaso do século XIX, com as invasões napoleónicas e com o ultimatum. Mas, esfriada a canícula patriótica, recai a dormitar. Só a mudança de regime de novo a abala profundamente, de tal modo reacendeu aos seus olhos a estrela da esperança. É inútil negá-lo: uma grande parte da Nação não pensa nem sofre. Há três séculos que está entorpecida. Ignorância, egoísmo e cobardia. São o zelo à esquerda. Por si nada valem. E dentre os que se disputam a primazia de factores da massa inerte, os valores mais altos uniram-se em torno à bandeira da República por adaptação necessária a esta lei natural: só as formas e as ideias progressivas são elementos de vida contínua, isto é, se multiplicam.
Foi essa parte da Nação, poucos chefes e muito povo, que, ao estalar a Grande Guerra, encarnou genialmente esta verdade. E mais o povo do que os chefes. Os grandes nunca a disseram toda. Mas a arraia teve relâmpagos de intuição secreta. Em Portugal é assim: calam-se os profetas da grei, mas a Sibila do Povo lá delira os oráculos. Que diabo fazemos sobre a Terra? Ocupamos, mercê das colónias, um lugar entre as maiores nações. Mas trata-se duma presença meramente passiva e corporal. Obstruímos o Mundo. Eis a ocasião de tomar lugar na vida, em presença activa do espírito. De contrário, o desmedido corpo morre, e arredam-nos, sem clemência, do caminho dos vivos. O nosso esforço colonizador elevara-nos à função preeminente de pátria-mãe duma outra nação. Desprezámos há muito tão elevado encargo, o que só redunda em desprestígio próprio. Excelente ensejo para recuperar o ascendente materno, tornando-nos, pelo exemplo, a sua inspiradora moral». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.

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