«O tom epistolar de António
José Saraiva contém-se já na primeira missiva, de 22 de Abril de 1961: agradecido e familiar, sem
abandonar a terceira pessoa com uma velha amiga e colega a sua carta, gosta de evocar os pequenos incidentes de uma vida
instável de bolseiro e, agora, investigador, que no-lo aproximam nos anos de
Paris, onde vive desde 1959. Redobra
de atenção para com os escritos da interlocutora, que lhe suscitam revisões
conceptuais e projectos só em parte respondidos na História da Cultura em Portugal,
cujo terceiro volume é de 1962, ou
nas refundições dos seus maiores: Fernão Lopes, Bernardim, Gil Vicente, Camões,
Eça. Mas as hipóteses de trabalho que vai lançando irão frutificar,
entretanto, em dissertações universitárias assentes no estudo estatístico da origem regional e da condição social dos homens
que mais ou menos governaram este país. Esta correspondência, desde o
postal breve à lição e ao ensaio, regurgita de premonições e profecias. Parte,
entretanto, de um incomum faro analítico, desaguando em sínteses notáveis: é o
caso da nossa burguesia mercantil, que foi motor de desenvolvimento e, após 1834, se fez agrária, atrás de
baronatos e comendas, sem nunca termos vivido um capitalismo industrial, o que
ainda hoje nos afecta.
Entrementes, a literatura homologa essa cristalização económica
e política do país. O grupo social donde emerge um autor dotou-se de uma visão
do mundo prolongada em estruturas literárias. A conceptualização de Lucien
Goldmann anda no ar. O estruturalismo genético é de base marxista, mas Saraiva tem atritos com o Partido
Comunista Português e ainda visita a União Soviética; descobre o estruturalismo
tout court (e louva Roland Barthes),
mas recua a Merleau-Ponty e à fenomenologia; sai embevecido de um Trotski
historiador e vê-se tentado por Gandhi, Tagore, Lanza del Vasto, o Budismo.
Esses momentos ou passagens serão perceptíveis nos cinco
anos (1961-1965) de correspondência; subjaz, porém, à continuada
reflexão sobre acontecimentos cimeiros desse lustro, a livre expressão de uma individualidade
anti-institucional, desconfiada de quaisquer sistemas e controlos, e
confessando-se nas provações, privações e pequenas misérias.
Dentre os intelectuais, os escritores do nosso estado de
coisas têm responsabilidades, e vá de nomeá-los, em breves pinceladas
ideológicas, que subsumem outras guerras, em particular, o confronto com o neo-realismo
já desacreditado pela juventude na União Soviética (onde se chamava realismo
socialista), seus fautores na imprensa lusitana e, na Cidade-Luz, com os representantes do PCP. A referência de 1961 ao pontífice Júlio Dantas (1876-1962) remete para um afim
pontificado literário, que reitera em Abril de 1973: Pelo uso que fazem das
palavras, os neo-realistas estão muito mais perto de Júlio Dantas do que de
Almada. Júlio Dantas não falava das mesmas coisas que os neo-realistas, mas
tanto as coisas destes como as coisas daquele vinham do mesmo
banco, estavam representadas pela mesma moeda, correspondiam à mesma ordem. A
única diferença é que os neo-realistas estavam na oposição. No entremeio (26-X-1964),
buscara outro exemplo de choque: Em
resumo, o neo-realismo é, hoje, a ala conservadora da nossa literatura, e
contra eles apoio, por exemplo, uma Agustina Bessa-Luís, que, sob roupagens
tradicionalistas, representa literariamente (e isto é o que interessa)
algo de muito mais inovador. Bem sei que politicamente ela não é do contra,
mas eu recuso-me a deixar-me desorientar pelo equívoco que daí resulta». In António
José Saraiva e Luísa Dacosta, Correspondência, edição de Ernesto Rodrigues,
Gradiva, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-616-455-3.
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