As cidades e os olhos. Y
«(…) Passando o rio a vau, atravessando a passagem, o homem encontra-se
de repente diante da cidade de Moriana, com as portas de alabastro
transparentes à luz do sol, as colunas de coral que sustêm os frontões
incrustados em serpentina, os palácios todos de vidro como aquários onde nadam
as sombras das bailarinas de escamas prateadas sob os candelabros em forma de
medusa. Se não for a sua primeira viagem o homem sabe já que as cidades como
esta têm um reverso: basta percorrer um semicírculo e ter-se-á à vista a face
oculta de Moriana, uma extensão de chapa enferrujada, sarapilheira, tábuas
cheias de pregos, canos negros de fuligem, montões de latas, muros cobertos com
escritas meio apagadas, fundos de cadeira desempalhadas, cordas que só servem
para alguém se enforcar numa trave apodrecida. De uma parte à outra a cidade
parece que continua em perspectiva multiplicando o seu repertório de imagens:
afinal não tem espessura, consiste apenas num direito e num avesso, como uma
folha de papel, com uma figura de cá e outra de lá, que não se podem arrancar
nem guardar.
As cidades e o nome. X
Clarice, cidade gloriosa, tem uma história atribulada. Várias
vezes decaiu e refloresceu, tendo sempre a primeira Clarice como modelo
inigualável de todo o esplendor, em comparação com o qual o estado presente da
cidade não deixa de suscitar novos suspiros a cada volver das estrelas. Nos
séculos de degradação, a cidade, esvaziada das pestilências, baixando de
estatura devido aos desmoronamentos de travejamentos e cornijas e aos
aluimentos de terras, enferrujada e entupida por incúria ou falta dos
responsáveis pela manutenção, repovoava-se lentamente ao reemergirem das caves
e tocas hordas de sobreviventes que como ratos pululavam movidos pela ânsia de
vasculhar e roer, e até de rebuscar e remendar, como pássaros que fazem ninho.
Agarravam-se a tudo o que se pudesse retirar donde estava e pôr noutro lugar
para servir para outro uso: os cortinados de brocado acabavam a fazer de
lençóis; nas urnas cinerárias de mármore plantavam manjericos; as grelhas de
ferro forjado arrancadas das janelas dos gineceus serviam para grelhar carne de
gato sobre fogueiras de lenha talhada. Montada com as peças da Clarice
imprestável, tomava forma uma Clarice da sobrevivência, toda tugúrios e
pardieiros, esgotos infectos, coelheiras. No entanto, do antigo esplendor de
Clarice não se perdera quase nada, estava tudo ali, simplesmente disposto numa
ordem diferente mas não menos apropriada do que outrora às exigências dos
habitantes». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema,
Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.
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