Proémio
«Tendo eu, Luís cle Cadamosto, sido o primeiro em a muito
nobre cidade de Veneza que me resolvi a navegar o mar Oceano, fora do estreito
de Gibraltar, para as partes do Meio-Dia, nas terras dos negros da Baixa
Etiópia (nome genérico dado pelos antigos às terras habitadas por negras; a
Abissínia era conhecida pela designação de Alta Etiópica), e tendo visto nesta
minha primeira viagem muitas coisas novas e dignas de memória, pareceu-me
despender com elas algum trabalho e transcrevê-las assim como as tinha notado
de tempos em tempos no meu borrador, para que-aqueles que após mim vierem
conheçam qual foi o meu ânimo em buscá-las em diversas e novas regiões, sendo
elas tais que, verdadeiramente em comparação das nossas, as por mim vistas e
ouvidas poderiam chamar-se um mundo novo, e, se por mim não forem tão elegantemente
escritas como a matéria o pede, ao menos não faltarei a uma inteira verdade; e
isto antes escrevendo de menos, do que contando coisa alguma além do que é
certo. Deve-se pois saber que o primeiro inventor destas navegações em os
nossos tempos e por esta parte do mar Oceano para o Meio-Dia das terras dos
negros da Baixa-Etiópia, foi o muito ilustre infante Henrique, filho que foi do
rei de Portugal e dos Algarves, João,
o primeiro deste nome, o qual, ainda que possa ser grandemente louvado pelos
seus estudos na ciência do curso do céu e da astrologia, contudo passá-lo-ei em
silêncio e somente direi que, sendo de grande coração e engenho sublime e elevado,
se entregou todo à milícia de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelejando contra os bárbaros
e combatendo pela Fé, sem se resolver nunca a tornar estado e conservando-se
sempre donzel por causa da sua grande castidade. Fez grandes proezas guerreando
com os mouros, tanto com a sua própria pessoa como pela sua indústria, as quais
são dignas de eterna memória. De tal sorte que estando el-rei João I seu pai em
artigos de morte no ano de 1432, chamou o dito infante Henrique seu filho, como
quem conhecia as suas virtudes, e, com afectuosas palavras, lhe recomendou
aquela escola de cavaleiros portugueses, rogando-o e exortando-o a continuar
com o seu santo, real e louvável propósito de perseguir com todas as suas
forças os inimigos da Santa Fé de Cristo, o qual senhor em poucas palavras lhe
prometeu de fazê-lo assim. E depois da morte de seu pai com a ajuda del-rei
Duarte I, seu irmão mais velho, que sucedeu no reino de Portugal, fez muitas guerras
na África aos do reino de Fez, nas quais, sendo bem sucedido por muitos anos, procurando
por todas as vias danificar o dito reino, intentou mandar as suas caravelas
armadas a correr a costa de Safim e Messa, que são do mesmo reino de Fez, o
qual vem até ao mar Oceano da parte de fora do estreito de Gibraltar, e, assim,
as empregou anualmente, fazendo sempre muito dano aos mouros, e, solicitando o
dito senhor que navegassem cada ano mais avante, as fez chegar até um
promontório chamado cabo de Não,
que ficou assim chamado até ao dia de hoje, e este foi sempre o termo donde
ninguém antes passou que fudesse tornar, e assim se chamava cabo de Não, como quem dissesse: quem
o passa não volta». In Luís de Cadamosto, Viagens, Biblioteca
das Grandes Viagens, Portugália Editora, Lisboa, tradução de Sebastião Mendo
Trigoso (1773-1821).
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