terça-feira, 4 de novembro de 2014

Viagens Luís Cadamosto. «… as fez chegar até um promontório chamado ‘cabo de Não’, que ficou assim chamado até ao dia de hoje, e este foi sempre o termo donde ninguém antes passou que fudesse tornar, e assim se chamava ‘cabo de Não’, como quem dissesse: ‘quem o passa não volta’»

Cortesia de wikipedia e jdact

Proémio
«Tendo eu, Luís cle Cadamosto, sido o primeiro em a muito nobre cidade de Veneza que me resolvi a navegar o mar Oceano, fora do estreito de Gibraltar, para as partes do Meio-Dia, nas terras dos negros da Baixa Etiópia (nome genérico dado pelos antigos às terras habitadas por negras; a Abissínia era conhecida pela designação de Alta Etiópica), e tendo visto nesta minha primeira viagem muitas coisas novas e dignas de memória, pareceu-me despender com elas algum trabalho e transcrevê-las assim como as tinha notado de tempos em tempos no meu borrador, para que-aqueles que após mim vierem conheçam qual foi o meu ânimo em buscá-las em diversas e novas regiões, sendo elas tais que, verdadeiramente em comparação das nossas, as por mim vistas e ouvidas poderiam chamar-se um mundo novo, e, se por mim não forem tão elegantemente escritas como a matéria o pede, ao menos não faltarei a uma inteira verdade; e isto antes escrevendo de menos, do que contando coisa alguma além do que é certo. Deve-se pois saber que o primeiro inventor destas navegações em os nossos tempos e por esta parte do mar Oceano para o Meio-Dia das terras dos negros da Baixa-Etiópia, foi o muito ilustre infante Henrique, filho que foi do rei de Portugal e dos Algarves, João, o primeiro deste nome, o qual, ainda que possa ser grandemente louvado pelos seus estudos na ciência do curso do céu e da astrologia, contudo passá-lo-ei em silêncio e somente direi que, sendo de grande coração e engenho sublime e elevado, se entregou todo à milícia de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelejando contra os bárbaros e combatendo pela Fé, sem se resolver nunca a tornar estado e conservando-se sempre donzel por causa da sua grande castidade. Fez grandes proezas guerreando com os mouros, tanto com a sua própria pessoa como pela sua indústria, as quais são dignas de eterna memória. De tal sorte que estando el-rei João I seu pai em artigos de morte no ano de 1432, chamou o dito infante Henrique seu filho, como quem conhecia as suas virtudes, e, com afectuosas palavras, lhe recomendou aquela escola de cavaleiros portugueses, rogando-o e exortando-o a continuar com o seu santo, real e louvável propósito de perseguir com todas as suas forças os inimigos da Santa Fé de Cristo, o qual senhor em poucas palavras lhe prometeu de fazê-lo assim. E depois da morte de seu pai com a ajuda del-rei Duarte I, seu irmão mais velho, que sucedeu no reino de Portugal, fez muitas guerras na África aos do reino de Fez, nas quais, sendo bem sucedido por muitos anos, procurando por todas as vias danificar o dito reino, intentou mandar as suas caravelas armadas a correr a costa de Safim e Messa, que são do mesmo reino de Fez, o qual vem até ao mar Oceano da parte de fora do estreito de Gibraltar, e, assim, as empregou anualmente, fazendo sempre muito dano aos mouros, e, solicitando o dito senhor que navegassem cada ano mais avante, as fez chegar até um promontório chamado cabo de Não, que ficou assim chamado até ao dia de hoje, e este foi sempre o termo donde ninguém antes passou que fudesse tornar, e assim se chamava cabo de Não, como quem dissesse: quem o passa não volta». In Luís de Cadamosto, Viagens, Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, Lisboa, tradução de Sebastião Mendo Trigoso (1773-1821).


Cortesia de Portugália/JDACT