«(…) Isto já foi há alguns dias. Há
quantos estamos aqui? Lembrei-me de escrever este caderno precisamente
uma semana depois da chegada, isto é, no domingo, mas não comecei a fazê-lo
senão na tarde de segunda-feira, quando voltámos da universidade e te encerraste
para preparar uns temas urgentes. Na tarde seguinte não fiz nada: foi a de
terça-feira e passei-a percorrendo a ilha, espécie de Robinson maravilhado com
as cores do bosque, com os esquilos que não fugiam à minha passagem, e com um
casal de faisões que quase pude acariciar: sentei-me numa espécie de praceta
que hei-de mostrar-te, e pus-me a cantar como um rapaz novo ou como Tom O’Connor
quando bebe cerveja e deixa que a nostalgia se lhe solte; só que Tom conta,
quando não canta, e eu não tinha a quem contar. Sabias que ao chegar ao
intrincado, certo lugar do bosque onde só o bosque se vê e se ouve, nada humano
em volta, o céu no alto e o entardecer em cima, tive medo de algo, não te sei dizer de quê? Dos
homens não era, é óbvio. Veio-me de repente o desejo de fugir, e fi-lo desajeitadamente,
em volta daquele ponto, quase sem me afastar, e as trevas a chegarem: até que
encontrei a vereda, e a cabana solitária, mas já familiar, acolheu-me como um
seio. Não to disse; há outras coisas que te oculto. Hão-de sair, se nos disserem
respeito. Ontem, quarta-feira, já era meia-noite quando chegámos ao cais; olhaste
para o relógio do automóvel e fizeste um comentário acerca do jantar a que
tínhamos ido juntos: o que era oferecido pelo Departamento de Línguas Românicas
a esse professor francês que sabe tudo acerca de Rabelais e que é acompanhado
por uma rapariga ruiva, de corpo muito espigado e modos tranquilos; parecem
apaixonados, ou pareceu-te a ti, porque eu, na verdade, não tinha reparado nem
nos seus olhares nem nas suas gentilezas. Mas tu disseste-me, quando ela correu
a socorrê-lo porque se tinha engasgado e tossia como se fosse sufocar: Aquela rapariga gosta dele, e, momentos
depois, ao ver a delicadeza com que ele correspondia ao socorro: Aqueles amam-se.
Eu disse-te ao ouvido que achava a conjectura de certa forma audaz e de
escasso fundamento, e julgo recordar que acrescentei algo relativamente a essa
tua mania que te leva a ver, onde não os há, amores precários: sê-lo-iam, no
caso de existirem, os do especialista em Rabelais e da rapariga ruiva, muito
mais nova do que ele. Mas, mesmo assim, para
quê enterneceres-te? Porquê
sentir tristeza? Descobri há tempos que tornas teus os amores difíceis;
mais ainda, se forem impossíveis. Tinha-se levantado o chairman com a taça na mão,
e começava o discurso. Deu-me tempo para pensar na história de Agnesse, vagamente
sabida, mas não nos episódios amorosos, mal conhecidos então. Foi Claire quem
ma descobriu, personagem curiosa e incrível, apesar de se lhenotar (a Claire)
que de quem queria falar era de ti; referiu-se a vocês pouco tempo depois
daquela noite em que ouviste em minha casa O
Lamento de Ariadne e em que de forma tão poética se iniciou a nossa
amizade; não foi um conto repentino, mas sim muito preparado e abundante em
precauções, e depois de uns preâmbulos com referência a umas certas árvores que
crescem uma no tronco da outra, ou que se lhe instala num dos lados: o que
levou o colóquio ao tema dos bosques, e contei-lhe como uma noite, que agora já
me parece tão antiga como o meu coração, descendo pela ladeira duma montanha
alemã, tive a sensação, ou talvez o sentimento, de penetrar num âmbito sagrado,
que o sagrado caía sobre mim, como o relento, das folhas das tílias e me deixava
envolvido, possuído, um pouco assustado; mais ou menos o mesmo que acabo de te
contar acerca do centro da ilha e do medo que tive perante o mysterium
tremendum agora já identificável. Mas o bosque alemão de que te falo,
mais uma floresta, não era dos sonoros, mas sim dos silentes, e notava-se logo
que detrás ficava um buraco, talvez o vazio, até distâncias inconcebíveis e
escuras. Claire disse-me que nunca tinha chegado a tanto, talvez por causa da
sua tendência infantil para a incredulidade, mas sim a manter com o bosque no
seu conjunto e como entidade unitária, dado que assim o havia imaginado sempre,
relações pessoais baseadas sobretudo na conversação, e que aquele que rodeava a
sua aldeia, povoado de coníferas e de abundantes espíritos subtis, que além
disso se detinha à beira do riacho, saltava-o, e continuava depois, era loquaz
até, à irritação e à suspeita, e os seus relatórios acerca do baile das fadas e
do lugar onde os gnomos fabricam os seus garfos de ouro recebia-os Claire como
desprezíveis, embora nunca tenha
encontrado tesouros nem visto fadas bailarinas, mas isto obedece seguramente a
alguma limitação pessoal, falta de sonho ou excesso de proteínas, concluiu;
mas o que me interessava a mim era o caso de Agnesse e a forma de viver da faia
no tronco do carvalho, Agnesse em Ariadne, arrisquei um certo tipo de troça, eficaz
embora no fundo inofensiva, acerca das faculdades linguísticas do bosque, o que
não agradou de todo a Claire, que bem sabes como goza deixando que a fantasia o
eleve até lugares donde mais tarde o regresso se torna difícil: pois de um pulo
saltou do bosque para o cadeirão do gabinete em que estávamos a falar, que era
o meu (e é claro que tocava no gira-discos a Sonata a Kreutzer que ele me tinha solicitado), e disse-me: …
olhe, vai ser difícil você acreditar
nisso de Agnesse, a sua condição de meridional materialista impede-lho; mas eu,
sim: acredito a pés juntos; sabia que consiste em que certa pessoa cresça
dentro de outra? Como Napoleão
dentro de si?, respondi-lhe com ar de sorna; e ele, a princípio,
mandou-me ir dar uma volta, e ficou um grande bocado em silêncio, ouvindo
Oistrack; mas, depois, reconheceu que o caso tinha bastante de incrível, pelo
menos nos termos em que ele o tinha enunciado; que, é claro, o uso do verbo crescer
não era apropriado, dado que, mais do que um crescimento, se tratava de uma
acumulação, talvez de uma instalação, o que resultava, afinal, no mesmo, isto
é, numa entidade vivente a quem seria bom, de qualquer forma, aplicar as
últimas descobertas e as últimas afirmações acerca da sua essência e
consistência extraídas da psicologia condutista e das modernas teorias da
personalidade». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados,
Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com
interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT