terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «… se o rei consegue ver a rainha nua, todos teremos pretexto para despir as nossas fêmeas, sejam esposas ou queridas, e despir-se-ão todas as destes reinos, e as mulheres das Índias…»

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«(…) As toalhas eram sóbrias, embora dignas; a baixela, de boa prata antiga; a comida, pelo que podia ver-se, abundante  e simples, mas o inquisidor-mor servia-se com parcimónia, e o que não comia o criado Diego, dotado de melhor dente e mais manifesta gula, regressava à cozinha para regozijo de ajudantes e outros subalternos. Naquele dia tinha-se servido apenas uma sopa e trutas à navarra, e, como sobremesa, uma das guloseimas de massa folhada e ovos que elaboravam para ele e para outros magnates as madres de Santa Clara a Velha (as de Santa Clara a Nova tinham-se especializado em escabeches, que não ofereciam, vendiam, sendo mais novas, eram mais pobres. Fosse como fosse, o inquisidor-mor não ignorava os sabores dos seus bacalhaus, pura delícia para o palato atribuída à intervenção directa dos anjos, embora não pelo inquisidor-mor, que, a esse respeito, sabia a que se ater). Havia um pássaro na cela, exemplar talvez perdido da tribo migratória, senão enganado pela suavidade do ar. Deu umas voltas, chocou aqui e além e saiu para o jardim pela mesma janela por onde tinha entrado. O inquisidor-mor não teria sabido explicar por que razão seguiu o seu voo com inveja. O criado Diego, sentado num escabelo, tinha posto de lado a escudela de sopa, já vazia, e limpava de espinhas a truta com a sua navalha de corno. Tinha também ao lado, no chão, um grande copo de estanho a transbordar de tinto. O inquisidor-mor, brincando com a cruz peitoral, parecia ter-se transido, depois do voo do pássaro, de modo que o criado Diego mastigava ruidosamente, sem medo de raspanete. Mas o prelado acordou e chamou-o à ordem.
Diego, interrompeste-me uma possível sesta, com os estalitos da tua língua e com esse tornado que provocas ao mastigar. Agradecer-te-ia que comesses com mais comedimento. E que importa, Excelência, agora que o acordei? Por muito cuidado que se tenha, senhor, ao comer sempre se emitem rumores. O pássaro, no seu voo, roçou o vidro da janela com rápido, efémero ruído. E, a propósito de rumores, Diego, que se diz hoje pela corte? O criado acabou de mastigar o pedaço de truta que os seus dedos gordurosos tinham levado à boca. As mãos do criado eram grandes, e quando remexiam no prato cobriam-no. um frade capuchinho, dos de Medinaceli, tocou a rebate, como se houvesse fogo, e à gente que se ajuntou lançou um sermão incendiário contra os pecados dos grandes que cabe ao povo pagar, ou, pelo menos, compensar por meio de penitências públicas pelos danos que não cometeu. Isto tinha também algo a ver com uma serpente boa e com um belíssimo diabo. Garanto-lhe, Excelência, que o povo teria posto fogo ao Paço se o frade lho tivesse ordenado, mas limitou-se a organizar procissões a desoras, uma num bairro, outra noutro, por aí fora, com cantos penitenciais e ele próprio à frente de uma delas, arrastando uma cruz. Está toda a gente em brasa e não há ninguém que não espere sair à rua carregado de correntes. Isso excita muito as mulheres, e quando voltam a casa, derreados, encontram-nas inquietas, e têm de fazer uma segunda penitência. E no mentideiro?
No mentideiro, Excelência, tratou-se de três temas, por sua ordem, digamos: ao princípio todos falavam de Marfisa, Vossa Excelência sabe a quem me refiro: se é assim, se é assado, se tem as mamas tesas ou descaídas. O pássaro que esvoaçava pelo jardim, e que às vezes gritava, não podia sugerir a imagem de umas mamas, nem descaídas nem tesas: Sua Excelência lamentou-o. Depois, se o rei tinha passado a noite com ela, o que fez Sua Majestade subir dois ou três pontos na estima dos presentes, embora não tenham faltado maledicências que reduziram a nada a acutilância real; por último, senhor, continuou-se a falar do rei, mas desta vez porque se disse que tinha pedido aos gritos para ver a rainha nua. E aqui, senhor, as opiniões dividiram-se, porque alguns, poucos, consideravam-no um mau exemplo, e muitos, a maioria, como o exemplo que havia a seguir, e que se deixassem de tretas e considerações. Nisto um cavalheiro bem posto, embora com ar de novo-rico, mais que de fidalgo, proferiu mais ou menos estas palavras: … se o rei consegue ver a rainha nua, todos teremos pretexto para despir as nossas fêmeas, sejam esposas ou queridas, e despir-se-ão todas as destes reinos, e as mulheres das Índias, e acabarão nuas as mulheres do mundo inteiro, se pega a moda, o que vai sendo hora de que aconteça, porque de camisas de noite compridas e de disputas para que as levantem um pouco mais, estamos nós tão cansados como elas. O único perigo, e este meramente imaginário, reside em que se disponham a sair nuas para a rua, ou com trajes tão transparentes que deixem ver tudo, pois são bem conhecidos os desejos que têm as mulheres de publicarem os seus segredos. Posso dizer a Vossa Excelência que na roda onde se dizia isto não havia padres, e, se algum havia, não vestia roupa talar, e não esteve em desacordo com a opinião do novo-rico». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da Caminho/JDACT