«(…) As toalhas eram sóbrias, embora dignas; a baixela, de boa prata
antiga; a comida, pelo que podia ver-se, abundante e simples, mas o inquisidor-mor servia-se com
parcimónia, e o que não comia o criado Diego, dotado de melhor dente e mais
manifesta gula, regressava à cozinha para regozijo de ajudantes e outros
subalternos. Naquele dia tinha-se servido apenas uma sopa e trutas à navarra,
e, como sobremesa, uma das guloseimas de massa folhada e ovos que elaboravam
para ele e para outros magnates as madres de Santa Clara a Velha (as de
Santa Clara a Nova tinham-se especializado em escabeches, que não ofereciam, vendiam,
sendo mais novas, eram mais pobres. Fosse como fosse, o inquisidor-mor não
ignorava os sabores dos seus bacalhaus, pura delícia para o palato atribuída à
intervenção directa dos anjos, embora não pelo inquisidor-mor, que, a esse
respeito, sabia a que se ater). Havia um pássaro na cela, exemplar talvez
perdido da tribo migratória, senão enganado pela suavidade do ar. Deu umas
voltas, chocou aqui e além e saiu para o jardim pela mesma janela por onde
tinha entrado. O inquisidor-mor não teria sabido explicar por que razão seguiu
o seu voo com inveja. O criado Diego, sentado num escabelo, tinha posto de lado
a escudela de sopa, já vazia, e limpava de espinhas a truta com a sua navalha
de corno. Tinha também ao lado, no chão, um grande copo de estanho a
transbordar de tinto. O inquisidor-mor, brincando com a cruz peitoral, parecia
ter-se transido, depois do voo do pássaro, de modo que o criado Diego mastigava
ruidosamente, sem medo de raspanete. Mas o prelado acordou e chamou-o à ordem.
Diego, interrompeste-me uma possível sesta, com os estalitos da tua
língua e com esse tornado que provocas ao mastigar. Agradecer-te-ia que
comesses com mais comedimento. E que
importa, Excelência, agora que o acordei? Por muito cuidado que se
tenha, senhor, ao comer sempre se emitem rumores. O pássaro, no seu voo, roçou
o vidro da janela com rápido, efémero ruído. E, a propósito de rumores, Diego, que se diz hoje pela corte? O criado
acabou de mastigar o pedaço de truta que os seus dedos gordurosos tinham levado
à boca. As mãos do criado eram grandes, e quando remexiam no prato cobriam-no.
um frade capuchinho, dos de Medinaceli, tocou a rebate, como se houvesse fogo,
e à gente que se ajuntou lançou um sermão incendiário contra os pecados dos
grandes que cabe ao povo pagar, ou, pelo menos, compensar por meio de
penitências públicas pelos danos que não cometeu. Isto tinha também algo a ver
com uma serpente boa e com um belíssimo diabo. Garanto-lhe, Excelência, que o
povo teria posto fogo ao Paço se o frade lho tivesse ordenado, mas limitou-se a
organizar procissões a desoras, uma num bairro, outra noutro, por aí fora, com cantos
penitenciais e ele próprio à frente de uma delas, arrastando uma cruz. Está toda
a gente em brasa e não há ninguém que não espere sair à rua carregado de
correntes. Isso excita muito as mulheres, e quando voltam a casa, derreados,
encontram-nas inquietas, e têm de fazer uma segunda penitência. E no mentideiro?
No mentideiro,
Excelência, tratou-se de três temas, por sua ordem, digamos: ao princípio todos
falavam de Marfisa, Vossa Excelência sabe a quem me refiro: se é assim, se é
assado, se tem as mamas tesas ou descaídas. O pássaro que esvoaçava pelo
jardim, e que às vezes gritava, não podia sugerir a imagem de umas mamas, nem
descaídas nem tesas: Sua Excelência lamentou-o. Depois, se o rei tinha passado
a noite com ela, o que fez Sua Majestade subir dois ou três pontos na estima
dos presentes, embora não tenham faltado maledicências que reduziram a nada a
acutilância real; por último, senhor, continuou-se a falar do rei, mas desta
vez porque se disse que tinha pedido aos gritos para ver a rainha nua. E aqui,
senhor, as opiniões dividiram-se, porque alguns, poucos, consideravam-no um mau
exemplo, e muitos, a maioria, como o exemplo que havia a seguir, e que se deixassem
de tretas e considerações. Nisto um cavalheiro bem posto, embora com ar de
novo-rico, mais que de fidalgo, proferiu mais ou menos estas palavras: … se o rei consegue ver a rainha nua, todos
teremos pretexto para despir as nossas fêmeas, sejam esposas ou queridas, e
despir-se-ão todas as destes reinos, e as mulheres das Índias, e acabarão nuas
as mulheres do mundo inteiro, se pega a moda, o que vai sendo hora de que
aconteça, porque de camisas de noite compridas e de disputas para que as
levantem um pouco mais, estamos nós tão cansados como elas. O único perigo, e
este meramente imaginário, reside em que se disponham a sair nuas para a rua,
ou com trajes tão transparentes que deixem ver tudo, pois são bem conhecidos os
desejos que têm as mulheres de publicarem os seus segredos. Posso dizer a
Vossa Excelência que na roda onde se dizia isto não havia padres, e, se algum
havia, não vestia roupa talar, e não esteve em desacordo com a opinião do
novo-rico». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei
Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho,
1992, ISBN 972-21-0708-9.
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