segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O Rosto de Camões. Aníbal Almeida. «Conhecidas, desde a primeira metade do século XVIII, as três gravuras-base co cânone iconográfico camoniano e divulgado, desde 1880, o que então parecia um seu parente pobre (o desenho à pena ‘hecho de mano de Manuel Faria’, faltava só dispor e ordenar os elementos da sucessão…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«L’ingegno del pittore vuol essere asimilitude delo specchio». In Leonardo da Vinci

Dez anos de Camões
«O ensaio que segue constitui pouco mais que o registo do resultado de uma inspecção visual das espécies fundamentais da iconografia camoniana tais como as publicou, em Setembro de 1972, a revista Panorama, editada pela defunta SEIT em luxuoso número dedicado ao IV Centenário de Os Lusíadas, extensamente comemorado a essa obra crepuscular daquele fim de império. E visa mada mais nada menos que estabelecer, quase só a partir dessa base, a vera efigie de Camões. A incómoda surpresa de esta proposta se me oferecer como viável viria a acentuar-se, logo a seguir, com ter adquirido a convicção de que os traços fisionómicos, peculiares e expressivos. Do poeta, podiam ter-se revelado, não há dez anos, mas há cinquenta e sete: desde a publicação por Afonso Dornelas, da peça capital deste aparente quebra-cabeças. Na verdade, o conjunto do que designaremos por espécies sinópticas ficou perfeito e coerente desde a comunicação, por esse autor à Academia das Ciências, 23 de Julho de 1925, da cópia hoje conhecida da sanguínea de Fernão Gomes: com seu vincado ar de família, sem divergências irredutíveis, portanto o selo virtual do lugar respectivo no seio da parentela, em suas linhas recta e colateral, como antes, porém agora sem postular a existência de antecessor incógnito nascido no Parnaso, adulto e já armado, da coxa ou virilha de Deus Pai. Conhecidas, desde a primeira metade do século XVIII, as três gravuras-base co cânone iconográfico camoniano e divulgado, desde 1880, o que então parecia um seu parente pobre (o desenho à pena hecho de mano de Manuel Faria, faltava só dispor e ordenar os elementos da sucessão, desde o seu termo inicial à gravura de A. Paulus e descendentes imediatos mais temporãos, passando pelo produto do benemérito Faria, realmente medíocre mas com a importância crucial de um anterior missing link agora revestido do seu alcance verdadeiro de elo de ligação entre um retrato do natural de homem de pena e a infindável teoria das espécies canónicas, ataviadas com os sinais de Apolo e Marte, que se lhes veio a suceder.
De 1925 para cá o panorama não se alterou, salva a publicação em 1972, por Maria Antonieta Azevedo, do espectacular retrato da prisão, que aliás veio depor, eloquentemente, sobre a verdade das espécies sinópticas, passando a constituir, a par da miniatura de Goa, o par de espécies-testemunho daquele elenco e, em geral (por ambas serem mais do que monocromias), do corpo (inteiro, no primeiro caso) de Camões. Posto o que falta apenas declarar o seguinte: não é de ânimo leve que empreendo esta incursão pela seara alheia do camonismo; faço-o apenas uti cives (sem pois, reivindicar sequer um grão de competência no seio desse composto, obeso e vário, constituído pela pretensa entidade epistémica que se traduz em cuidar de Camões) e só após dez anos de paciência não compensada. E a circunstância de fundamentalmente se tratar de expor aqui a solução de um problema do tipo é bom observador?, leva-me a protestar, logo de início, que só uma certa desatenção, peculiar aos camonistas, especialmente sensível e danosa neste domínio iconográfico, me ensinou a fazê-lo, prestando inteira concordância ao desabafo de um iconografista camonista sobre outro cujos paralelos, contrastes e filiações com razão lhe pareceram totalmente falhos de espírito crítico e até de capacidade de observação: esse o motivo por que escrevo.
Por outro lado, ocorre confessar que, neste ponto, nel mezzo del camin di nostra vita, me vejo constrangido a resistir às várias e urgentes tentações deste lugar de privilégio, e a esconjurar este fantasma devorador das energias em busca do seu rosto: esse o motivo que escrevo agora. Claro, quase uma década passada de atenção permanente, embora desigual, a este tema, não vai servir-se, sem guarnição e sem tempero, o fruto, apenas, de um olhar de relance e à vista desarmada: não é impunemente que se entretém convívio diuturno com uma figura de tal grandeza e singular projecção para nós, quer queiramos quer não, lusíadas dos dele. Mas irei proceder em termos de poder manter inteiro domínio das bases virtuais e bibliográficas sobre que se ergue este discurso: daí o aparato iconográfico, talvez primo conspectu excrecente, que acompanha estas palavras, aliás livres de alusões ou acenos implícitos a autoridades de que se louva o camonismo. Pode, pois, reconhecer ou não por verdadeiro o rosto conhecido, mas não reconhecido, que agora vai indigitado como figura ou gesto de Camões: esse o motivo por que escrevo assim». In Aníbal Almeida, O Rosto de Camões, Universidade de Coimbra, Revista Científica e Literária, O Instituto, Auro Pretiosior, Coimbra Editora Limitada, volumes 140/141, Coimbra, 1980/1981.

Cortesia da UCoimbra/JDACT