«L’ingegno del pittore vuol essere asimilitude delo
specchio». In Leonardo
da Vinci
Dez anos de Camões
«O ensaio que segue constitui pouco mais que o registo do
resultado de uma inspecção visual das
espécies fundamentais da iconografia camoniana tais como as publicou, em
Setembro de 1972, a revista Panorama, editada pela defunta
SEIT em luxuoso número dedicado ao IV Centenário de Os Lusíadas, extensamente
comemorado a essa obra crepuscular daquele fim de império. E visa mada mais
nada menos que estabelecer, quase só a partir dessa base, a vera efigie de Camões.
A incómoda surpresa de esta proposta se me oferecer como viável viria a
acentuar-se, logo a seguir, com ter adquirido a convicção de que os traços
fisionómicos, peculiares e expressivos. Do poeta, podiam ter-se revelado, não há dez anos, mas há
cinquenta e sete: desde a publicação por Afonso Dornelas, da peça capital deste
aparente quebra-cabeças. Na verdade, o conjunto do que designaremos por espécies sinópticas ficou perfeito e
coerente desde a comunicação, por esse autor à Academia das Ciências, 23 de Julho de 1925, da cópia
hoje conhecida da sanguínea de Fernão
Gomes: com seu vincado ar de família, sem divergências irredutíveis, portanto o
selo virtual do lugar respectivo no seio da parentela, em suas linhas recta e
colateral, como antes, porém agora sem postular a existência de antecessor
incógnito nascido no Parnaso, adulto e já armado, da coxa ou virilha de Deus
Pai. Conhecidas, desde a primeira metade do século XVIII, as três gravuras-base
co cânone iconográfico camoniano e divulgado, desde 1880, o que então parecia um seu parente pobre (o desenho à pena hecho de mano de Manuel Faria,
faltava só dispor e ordenar os elementos da sucessão, desde o seu termo inicial
à gravura de A. Paulus e descendentes imediatos mais temporãos, passando
pelo produto do benemérito Faria, realmente medíocre mas com a importância
crucial de um anterior missing link
agora revestido do seu alcance verdadeiro de elo de ligação entre um retrato do natural de homem de pena e a
infindável teoria das espécies canónicas,
ataviadas com os sinais de Apolo e Marte, que se lhes veio a suceder.
De 1925 para cá o
panorama não se alterou, salva a publicação em 1972, por Maria Antonieta Azevedo, do espectacular retrato da prisão, que aliás veio
depor, eloquentemente, sobre a verdade das espécies
sinópticas, passando a constituir, a par da miniatura de Goa, o par de espécies-testemunho
daquele elenco e, em geral (por ambas serem mais do que monocromias), do
corpo (inteiro, no primeiro caso) de Camões.
Posto o que falta apenas declarar o seguinte: não é de ânimo leve que empreendo
esta incursão pela seara alheia do camonismo;
faço-o apenas uti cives (sem pois, reivindicar sequer um grão de competência
no seio desse composto, obeso e vário, constituído pela pretensa entidade
epistémica que se traduz em cuidar de Camões)
e só após dez anos de paciência não compensada. E a circunstância de
fundamentalmente se tratar de expor aqui a solução de um problema do tipo é
bom observador?, leva-me a protestar, logo de início, que só uma certa
desatenção, peculiar aos camonistas,
especialmente sensível e danosa neste domínio iconográfico, me ensinou a
fazê-lo, prestando inteira concordância ao desabafo de um iconografista camonista sobre outro cujos paralelos, contrastes
e filiações com razão lhe pareceram totalmente falhos de espírito
crítico e até de capacidade de observação: esse o motivo por que escrevo.
Por outro lado, ocorre confessar que, neste ponto, nel mezzo del camin di nostra vita,
me vejo constrangido a resistir às várias e urgentes tentações deste lugar de
privilégio, e a esconjurar este fantasma devorador das energias em busca do seu
rosto: esse o motivo que escrevo agora. Claro, quase uma década passada de
atenção permanente, embora desigual, a este tema, não vai servir-se, sem
guarnição e sem tempero, o fruto, apenas, de um olhar de relance e à vista
desarmada: não é impunemente que se entretém convívio diuturno com uma figura
de tal grandeza e singular projecção para nós, quer queiramos quer não,
lusíadas dos dele. Mas irei proceder em termos de poder manter inteiro domínio
das bases virtuais e bibliográficas sobre que se ergue este discurso: daí o
aparato iconográfico, talvez primo conspectu
excrecente, que acompanha estas palavras, aliás livres de alusões ou acenos
implícitos a autoridades de que se louva o camonismo. Pode, pois, reconhecer ou
não por verdadeiro o rosto conhecido, mas não reconhecido, que agora vai
indigitado como figura ou gesto de Camões:
esse o motivo por que escrevo assim». In Aníbal Almeida, O Rosto de Camões, Universidade
de Coimbra, Revista Científica e Literária, O Instituto, Auro Pretiosior,
Coimbra Editora Limitada, volumes 140/141, Coimbra, 1980/1981.
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