domingo, 15 de dezembro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Todo o seu corpo era moreno. Gostava de ter as minhas mãos nas suas: as minhas, muito brancas e esguias, contrastavam na sua cor tisnada. Quem são os teus pais? Não sei»

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A Letra Pitagórica
«(…) O meu companheiro partiu imediatamente para Évora montado num burrinho que a boa mulher lhe emprestou. Não fica por aqui a sua caridade, pois daí a pouco entra no quarto mais a filha. Traz uma tigela nas mãos. Aquilo ia fazer-me bem. Era um chá de laranjeira. Tinha a virtude de abater a febre. Na testa um lenço embebido em vinagre frio e roupa bem aconchegada até ao queixo. Deixam o quarto meio escurecido, ao verem-me com os olhos fechados. Adormeci. Acordei não sei quanto tempo depois, com a moça sentada na borda da cama a tirar-me o lenço da testa. Eu estava todo molhado de suor e tinha a cabeça ourada.
Como te sentes?, pergunta-me vendo-me abrir os olhos. Faço-lhe um gesto desolado. Toca-me a mão: estás a suar. Precisas de roupa seca. Vou ver se ta arranjo. Sai mas não demora. Traz uma comprida camisa de dormir, de flanela. Faz-me sentar na cama, tira-me rapidamente a roupa, tens um lindo medalhão!, enxuga-me com uma toalha de linho, muito fresca, esfrega-me as costas e o peito, enfia-me a camisa seca, deita-me, cobre-me, limpa-me as bagas de suor da face, ... e um lindo cabelo, e aplica-me na testa outro lenço fresco embebido em vinagre.
Dorme. Voltarei mais tarde. Obrigado. Como te chamas?, a custo consigo balbuciar. Margarida. Obrigado, Margarida!,digo afagando-lhe a mão. Pelo meio-dia ouviu-se o rodar de uma carroça ou coisa que o valesse. Era o físico que chegava, enviado pelo dom Abade. Vinha buscar-me. Não me quero ir embora, pensei. Abriram-lhe a porta e conduziram-no junto de mim. Mal me viu torceu o nariz e resmungou qualquer coisa. Vou exagerar a expressão de sofrimento, e pus o ar mais compungido e doloroso que me foi possível. Ergueu-me as pálpebras dos olhos, examinou-me a língua, pediu uma colher para me poder ver a garganta, dói, menti eu mesmo com a colher na boca, sentou-me na cama e, tendo colocado um fino pano no meu peito, encostava o ouvido a auscultar, mandou-me tossir, fez o mesmo nas costas, nos hipocôndrios,... A um canto, muito caladas, com a respiração contida, olhos muito abertos, as duas mulheres assistiam à cena como quem está pendente de um assunto de vida ou de morte. Diogo chegava entretanto, atrasado porque o burro, que tinha de devolver, não andava tão depressa como os dois muares que tiravam o carro.
Não é aconselhável, disse o médico virando-se para Diogo, que entrara no quarto, no estado em que ele se encontra, levá-lo daqui, como quer o superior. Mas tem de ser!, ripostou Diogo. O superior foi peremptório. Temos de correr esse risco. Um médico não corria desses riscos. Voltariam a Évora. Ele próprio falaria com o abade, enquanto Diogo ia aviar na botica do convento a receita que prescrevia, e, dirigindo-se às mulheres, continuassem a pôr-me na testa pachos de vinagre fresco e vissem se no poço haveria umas sanguessugas... Far-me-iam bem ... Só ao fim de duas semanas a doença começou a ceder. Diogo, que a princípio não me abandonava, vendo os cuidados que as mulheres da casa tinham para comigo, passou a vir ver-me dia sim dia não e a dormir no convento. Depois espaçou as vindas, mas ganhou um amigo no burrito que o levava e trazia, para o qual tinha sempre prestes o mimo de um punhado de favas. Quando chegava, os alforges vinham abastecidos de carne, ovos, leite e, por insistência do superior, obrigava a viúva a receber dinheiro por trabalho e hospedagem tão incómodos, com grande arrelia dela, que nada queria aceitar.
Margarida, porque se nos prendem os olhos, as mãos?, ficava a fazer-me companhia, desde que eu adoecera, e não ia com a mãe à cidade vender fruta e hortaliça. Vinha costurar para a minha beira e punha-se a cantar: quem tem pinheirais tem pinhas quem tem pinhas tem pinhões quem tem seus amores ausentes são dobradas as paixões... Sempre vais para padre?, perguntava-me. Não sei ainda. Canta mais. Gostas? Fiz que sim com a cabeça. Depois de um silêncio, como a rebuscar nas lembranças, cantou num fio de voz muito fino e muito límpido: se fores lavar para o rio lava na pedra do meio. Se lá caírem flores recolhe-as no teu seio... Mas, como se o pensamento não se tivesse desligado da conversa inicial, disse: é pena. Se fores, diz-me, porque me quero confessar a ti. Não sejas tonta. Tu que pecados tens? Pecados de pensamento. Queria desviar-me de Deus. Visse eu se não era um pecado tamanhão: querer roubar-me a Deus! Deitava-se ao meu lado e punha-se-me aos beijos e afagos, a que de pronto as minhas mãos e os meus lábios correspondiam. Margarida era capitosa: cabelos muito negros e fartos a caírem-lhe ondados sobre os ombros: uns olhos profundos em que brilhavam cintilações de desejos; lábios polpudos a pedir outros lábios; seios firmes, espetados; ancas boleadas depois da cintura delgada. Todo o seu corpo era moreno. Gostava de ter as minhas mãos nas suas: as minhas, muito brancas e esguias, contrastavam na sua cor tisnada. Quem são os teus pais? Não sei». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT