sábado, 28 de dezembro de 2019

Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «O fulgor dos seus joelhos, que a despeito das meias azuis-escuras se pressentiam ainda bem queimados pelo sol, irradiava em torno uma luzinha pestanejada, como que vinda de um calorífero meio escondido»

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«(…) Em vez de logo a convidar a visitar o meu atelier (o que sem dúvida teria feito se ela fosse apenas bonita) ou de piedosamente a convencer de que não era nada ignorante (o que decerto teria tentado se fosse um estafermo), surpreendi-me, de repente, como nem tendo ouvido o que acabava de ouvir, a encetar um requisitório, meio amargo, meio irónico, contra o carácter fictício de semelhantes reuniões. Foi então que pela primeira vez exprimi em voz alta, falando com ela, tudo quanto acabava de descobrir em matéria de alegorias; e devo tê-lo feito com alguma vivacidade, já que a presença de mulheres belas, ou mesmo nem tanto, continua a produzir em mim, quer nas palavras quer nos gestos, certo estado de efervescência a que a minha mãe sempre se declarou alérgica, mas a que as damas pedantes chamam brilhante, e que a minha pediatra, bastante mais sóbria, rotula apenas de clownesco. Desta vez nem era bem disso que se tratava. Qualquer coisa de mais espontâneo: uma simples necessidade de manifestar o que nesse instante estava a sentir; e de manifestá-lo, precisamente, à única pessoa que ali me parecia feita da matéria dos deuses e se me afigurava também um completo ser humano.
Tínhamo-nos entretanto sentado, a um canto da sala, em duas poltronas muito próximas. O fulgor dos seus joelhos, que a despeito das meias azuis-escuras se pressentiam ainda bem queimados pelo sol, irradiava em torno uma luzinha pestanejada, como que vinda de um calorífero meio escondido. Quase no canto oposto, conversando não sei se com a Magistratura se com o Ensino, a minha mulher, estoicamente de pé, em obediência a um teórico regime de emagrecimento de que nunca mais se vislumbram resultados animadores, lançava-me de quando em quando uns complacentes olhares, mais de nurse que de pediatra, assim vigiando o meu comportamento perante o sumptuoso brinquedo de empréstimo com que estava entretido. Às vezes até sorria, orgulhosa decerto por me ver tão ajuizado. Parecendo menos alta do que já foi, mas ainda imponente, e com o perímetro das suas ancas triplicado desde que há trinta anos nos casámos, mostrava-se mais sólida e inspirava maior confiança que todos ou quase todos esses bonifrates ali à nossa roda. O marido da Y, ao fundo, dialogando com a Diplomacia, mantinha-se negligentemente de costas para nós. E principiáramos a vogar, não sei como, através de uma conversa sobre viagens.
Vendo bem, a Itália, que a Y conhece como os seus dedos, só seria tangencialmente a Itália através de cujos caminhos rompi as solas de alguns sapatos, e onde estive mesmo à beira de romper outras coisas. Vendo bem, os Estados Unidos, aonde vai com frequência, não teriam muito em comum com o que dos Estados Unidos salteadamente conheço. Mas o que me surpreendia era a extrema gentileza, envolvente e receptiva, da atenção com que me escutava. E, ambos estávamos de acordo sobre o ponto mais importante: que apenas em Roma ou em Nova Iorque, para não falarmos senão de grandes cidades, nos agradaria viver por muito tempo. Roma? Sim, claro que sim, pensava eu. Mesmo apesar de certos brados de indignação, no mais puro linguajar carioca, que ainda hoje devem atroar a superfície de uns tantos muros da Via Giulia; mesmo a despeito de certo momento que foi tão difícil de passar junto a uma fonte da Piazza Navona... Ah, só alguém com estes olhos mais que verdes, mais que azuis, conseguiria definitivamente varrer, de tais lugares e da minha memória, a acusadora imagem de outros olhos também claros mas de nenhuma tranquilidade. Principalmente em Roma..., acrescentou a Y. Roma, então... para sempre. Mas eu senti que seria ridículo dizer o mesmo, já que o meu sempre teria decerto um horizonte mais limitado». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.

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