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«(…) Em vez de logo a convidar a
visitar o meu atelier (o que sem dúvida teria feito se ela fosse apenas bonita)
ou de piedosamente a convencer de que não era nada ignorante (o que decerto
teria tentado se fosse um estafermo), surpreendi-me, de repente, como nem tendo
ouvido o que acabava de ouvir, a encetar um requisitório, meio amargo, meio
irónico, contra o carácter fictício de semelhantes reuniões. Foi então que pela
primeira vez exprimi em voz alta, falando com ela, tudo quanto acabava de
descobrir em matéria de alegorias; e devo tê-lo feito com alguma vivacidade, já
que a presença de mulheres belas, ou mesmo nem tanto, continua a produzir em
mim, quer nas palavras quer nos gestos, certo estado de efervescência a que a
minha mãe sempre se declarou alérgica, mas a que as damas pedantes chamam
brilhante, e que a minha pediatra, bastante mais sóbria, rotula apenas de clownesco.
Desta vez nem era bem disso que se tratava. Qualquer coisa de mais espontâneo:
uma simples necessidade de manifestar o que nesse instante estava a sentir; e
de manifestá-lo, precisamente, à única pessoa que ali me parecia feita da
matéria dos deuses e se me afigurava também um completo ser humano.
Tínhamo-nos entretanto sentado, a
um canto da sala, em duas poltronas muito próximas. O fulgor dos seus joelhos,
que a despeito das meias azuis-escuras se pressentiam ainda bem queimados pelo sol,
irradiava em torno uma luzinha pestanejada, como que vinda de um calorífero
meio escondido. Quase no canto oposto, conversando não sei se com a Magistratura
se com o Ensino, a minha mulher, estoicamente de pé, em obediência a um teórico
regime de emagrecimento de que nunca mais se vislumbram resultados animadores,
lançava-me de quando em quando uns complacentes olhares, mais de nurse que
de pediatra, assim vigiando o meu comportamento perante o sumptuoso brinquedo
de empréstimo com que estava entretido. Às vezes até sorria, orgulhosa decerto
por me ver tão ajuizado. Parecendo menos alta do que já foi, mas ainda imponente,
e com o perímetro das suas ancas triplicado desde que há trinta anos nos
casámos, mostrava-se mais sólida e inspirava maior confiança que todos ou quase
todos esses bonifrates ali à nossa roda. O marido da Y, ao fundo, dialogando
com a Diplomacia, mantinha-se negligentemente de costas para nós. E
principiáramos a vogar, não sei como, através de uma conversa sobre viagens.
Vendo bem, a Itália, que a Y
conhece como os seus dedos, só seria tangencialmente a Itália através de cujos
caminhos rompi as solas de alguns sapatos, e onde estive mesmo à beira de
romper outras coisas. Vendo bem, os Estados Unidos, aonde vai com frequência, não
teriam muito em comum com o que dos Estados Unidos salteadamente conheço. Mas o
que me surpreendia era a extrema gentileza, envolvente e receptiva, da atenção
com que me escutava. E, ambos estávamos de acordo sobre o ponto mais
importante: que apenas em Roma ou em Nova Iorque, para não falarmos senão de grandes
cidades, nos agradaria viver por muito tempo. Roma? Sim, claro que sim, pensava
eu. Mesmo apesar de certos brados de indignação, no mais puro linguajar carioca,
que ainda hoje devem atroar a superfície de uns tantos muros da Via Giulia;
mesmo a despeito de certo momento que foi tão difícil de passar junto a uma
fonte da Piazza Navona... Ah, só alguém com estes olhos mais que verdes, mais
que azuis, conseguiria definitivamente varrer, de tais lugares e da minha
memória, a acusadora imagem de outros olhos também claros mas de nenhuma
tranquilidade. Principalmente em Roma..., acrescentou a Y. Roma, então... para
sempre. Mas eu senti que seria ridículo dizer o mesmo, já que o meu sempre
teria decerto um horizonte mais limitado». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz,
Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.
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