domingo, 15 de dezembro de 2019

O Segredo da Bastarda. Cristina Norton. «Eugénia Maria sentia-se impotente diante dos acessos de tosse que deixavam a filha num estado de prostração cada vez maior. Tentava, enquanto lhe limpava o suor do rosto…»

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Travessia do Atlântico
«(…) De tarde, o som dos batuques acordou-os da sesta. Rodrigo já tinha ouvido falar nessas indecências e proibiu os filhos de irem à varanda, para onde todos se tinham dirigido numa correria, arrastando os sapatos meio calçados e com as meias caídas. Obedeceram depressa e, sem barulho, foram esgueirar-se pelas janelas do sótão para verem o espectáculo do cortejo de pretos e mulatos, que se contorciam ao som dos tambores, vestidos de branco, quase todos descalços, levantando o pó da rua com os pés chatos que pouco ou nada se descolavam do chão, numa cadência sensual que tinha provocado escândalo nos eclesiásticos sem, no entanto, se conseguir a sua proibição, pela simples razão de que era contagiante e ninguém conseguia ficar sem se mexer ao vê-los passar. Assim, escravos e libertos celebravam a chegada do novo governador de Minas Gerais, que por breves minutos se manteve junto da porta de entrada da sua residência, acenando com a cabeça em jeito de agradecimento, sem um sorriso sequer. As comemorações não se ficaram por aí. Houve depois uma missa cantada por um coro de pretos dirigidos pelo compositor e regente Parreira Neves, mulato famoso que ensinava na escola de música de Vila Rica; e, ao anoitecer, foram a um espectáculo teatral com mímicas e danças.
Como estas recepções eram oficiais, os pequenos Meneses puderam assistir também. Eles nunca tinham ido a nenhuma representação, muito menos daquele género. Durante anos lembraram-se dessa noite e contavam-na aos irmãos mais novos, acrescentando sempre mais um detalhe. Ao voltarem para casa quando já era noite escura, ficaram encantados com os lampiões da rua, mesmo se deles saía um cheiro desagradável a peixe queimado. Como resposta à pergunta do porquê desse fumo nauseabundo, disseram-lhes que era do óleo de baleia que utilizavam para iluminar a vila. Acharam-na mais moderna do que Lisboa, que não tinha luzes nem à volta do Paço, porque ninguém queria pagar o imposto de iluminação.

A Bastarda
Eugénia Maria sentia-se impotente diante dos acessos de tosse que deixavam a filha num estado de prostração cada vez maior. Tentava, enquanto lhe limpava o suor do rosto, acalmar a angústia de ambas falando-lhe baixinho. A chegada ao Brasil provocou na minha mãe e nos irmãos mais velhos uma mistura de emoções. Medo da imensidão desconhecida, de um território que parecia não ter fronteiras, onde, se se perdessem, podiam acabar na barriga de um animal selvagem ou simplesmente desaparecer. Mas, ao mesmo tempo, esse espaço sem limites atraía-os, fazia-os sentirem-se invulneráveis. Nessa época, os costumes eram ali mais permissivos do que em Portugal. A primeira surpresa foi a recepção que lhes fizeram os pretos e que os deixou maravilhados, pois nunca tinham visto nada igual, eram crianças habituadas a uma seriedade quase monacal. Porquê? Antes viviam num convento? Não, Isabel Maria, viveram em Guimarães, na Casa do Arco, entre os muros do jardim, com pouco tempo e espaço para brincarem. Deus não quis ainda que conhecêssemos o Brasil, talvez um dia possamos ir. A tua avó Eugénia dizia sempre que era a melhor coisa que lhe tinha acontecido na vida.

Brasil
Maria José dedicou a primeira semana a familiarizar-se com os novos criados e escravos, arrumando ao seu gosto as salas e os quartos, mudando só às vezes a posição dos móveis, pondo aqui e ali alguns objectos pessoais trazidos na viagem; e encomendou colchões de pêlo de cabra e de cabelo para substituir os velhos, deixados pelos anteriores ocupantes do palácio. As crianças puseram-se a explorar os cantos à casa, procurando passagens secretas e outros divertimentos caseiros, porque por enquanto só conheciam brincadeiras curtas e espaços reduzidos por fronteiras de pedra e cal. Como todos os habitantes de Guimarães, também eles tinham vivido ao ritmo das horas canónicas, atentos aos sinos da igreja que chamavam a rezar as matinas, a tércia, a sexta e a noa, depois o angelus, as vésperas e as completas, quando não havia o toque de finados a meio da noite, que os impedia de continuarem a dormir. Esse compasso limitava os seus movimentos e, mesmo não sendo obrigados a parar de fazer o que tinham começado, havia um silêncio que respeitavam e uma quietude que se apoderava deles enquanto duravam as badaladas». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-231-047-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT