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Travessia
do Atlântico
«(…)
De tarde, o som dos batuques acordou-os da sesta.
Rodrigo já tinha ouvido falar nessas indecências e proibiu os filhos de irem à
varanda, para onde todos se tinham dirigido numa correria, arrastando os
sapatos meio calçados e com as meias caídas. Obedeceram depressa e, sem
barulho, foram esgueirar-se pelas janelas do sótão para verem o espectáculo do
cortejo de pretos e mulatos, que se contorciam ao som dos tambores, vestidos de
branco, quase todos descalços, levantando o pó da rua com os pés chatos que
pouco ou nada se descolavam do chão, numa cadência sensual que tinha provocado
escândalo nos eclesiásticos sem, no entanto, se conseguir a sua proibição, pela
simples razão de que era contagiante e ninguém conseguia ficar sem se mexer ao
vê-los passar. Assim, escravos e libertos celebravam a chegada do novo governador
de Minas Gerais, que por breves minutos se manteve junto da porta de entrada da
sua residência, acenando com a cabeça em jeito de agradecimento, sem um sorriso
sequer. As comemorações não se ficaram por aí. Houve depois uma missa cantada
por um coro de pretos dirigidos pelo compositor e regente Parreira Neves,
mulato famoso que ensinava na escola de música de Vila Rica; e, ao anoitecer,
foram a um espectáculo teatral com mímicas e danças.
Como estas recepções
eram oficiais, os pequenos Meneses puderam assistir também. Eles nunca tinham
ido a nenhuma representação, muito menos daquele género. Durante anos
lembraram-se dessa noite e contavam-na aos irmãos mais novos, acrescentando
sempre mais um detalhe. Ao voltarem para casa quando já era noite escura,
ficaram encantados com os lampiões da rua, mesmo se deles saía um cheiro
desagradável a peixe queimado. Como resposta à pergunta do porquê desse fumo
nauseabundo, disseram-lhes que era do óleo de baleia que utilizavam para iluminar
a vila. Acharam-na mais moderna do que Lisboa, que não tinha luzes nem à volta
do Paço, porque ninguém queria pagar o imposto de iluminação.
A
Bastarda
Eugénia Maria
sentia-se impotente diante dos acessos de tosse que deixavam a filha num estado
de prostração cada vez maior. Tentava, enquanto lhe limpava o suor do rosto,
acalmar a angústia de ambas falando-lhe baixinho. A chegada ao Brasil provocou
na minha mãe e nos irmãos mais velhos uma mistura de emoções. Medo da imensidão
desconhecida, de um território que parecia não ter fronteiras, onde, se se
perdessem, podiam acabar na barriga de um animal selvagem ou simplesmente desaparecer.
Mas, ao mesmo tempo, esse espaço sem limites atraía-os, fazia-os sentirem-se invulneráveis.
Nessa época, os costumes eram ali mais permissivos do que em Portugal. A primeira
surpresa foi a recepção que lhes fizeram os pretos e que os deixou
maravilhados, pois nunca tinham visto nada igual, eram crianças habituadas a
uma seriedade quase monacal. Porquê? Antes viviam num convento? Não, Isabel
Maria, viveram em Guimarães, na Casa do Arco, entre os muros do jardim, com
pouco tempo e espaço para brincarem. Deus não quis ainda que conhecêssemos o
Brasil, talvez um dia possamos ir. A tua avó Eugénia dizia sempre que era a
melhor coisa que lhe tinha acontecido na vida.
Brasil
Maria José dedicou a primeira semana a familiarizar-se com os
novos criados e escravos, arrumando ao seu gosto as salas e os quartos, mudando
só às vezes a posição dos móveis, pondo aqui e ali alguns objectos pessoais
trazidos na viagem; e encomendou colchões de pêlo de cabra e de cabelo para
substituir os velhos, deixados pelos anteriores ocupantes do palácio. As crianças
puseram-se a explorar os cantos à casa, procurando passagens secretas e outros divertimentos
caseiros, porque por enquanto só conheciam brincadeiras curtas e espaços reduzidos
por fronteiras de pedra e cal. Como todos os habitantes de Guimarães, também
eles tinham vivido ao ritmo das horas canónicas, atentos aos sinos da igreja
que chamavam a rezar as matinas, a tércia, a sexta e a noa, depois o angelus,
as vésperas e as completas, quando não havia o toque de finados a meio da
noite, que os impedia de continuarem a dormir. Esse compasso limitava os seus
movimentos e, mesmo não sendo obrigados a parar de fazer o que tinham começado,
havia um silêncio que respeitavam e uma quietude que se apoderava deles
enquanto duravam as badaladas». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002,
Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-231-047-3.
Cortesia
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