quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Joana. A Louca. Linda Carlino. «Tinha esperança de que durante este período de espera acabasses por ver o teu papel sob uma luz diferente. Agora chegamos ao cerne da questão. Pretendeis que eu fique aqui»

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«(…) Durante a hora seguinte, dom Fradique tentou encorajá-la a aceitar o facto de que os seus conselhos vinham do grande amor que lhe tinha. Doía-lhe vê-la tão profundamente infeliz. Cisneros observava, evitando qualquer comentário. Joana deu por terminada a entrevista. Estava resolvida, com uma determinação de ferro. Voltai para junto da minha mãe e dizei-lhe que não volto a escutar nenhum sermão dos seus mensageiros. Informai-a da minha intenção de regressar a Flandres. Havei-vos esforçado ao máximo para realçar que necessito da sua autorização para partir, portanto podeis dizer-lhe que não lhe darei paz até a ter. Dizei-lhe que esperarei o tempo que for necessário, junto do portão do castelo. Adeus, que Deus vos dê uma viagem rápida. Acompanhou-os ao portão e, enquanto eles partiam, retomou a sua posição num dos postos de guarda, de forma que vissem que falava sério. Agarrou-se com força às grades e ficou a olhar para o que pensava ser a direcção de Flandres. Ninguém a demoveu. Os guardas trouxeram-lhe uma braseira que lhe desse algum calor e alguém lhe colocou um manto de peles sobre os ombros.

Permaneceu no seu posto por cinco dias e noites terrivelmente frios, descansando raramente na sala da guarda. No sexto dia, chegou o comboio de bagagens da mãe. Joana reenviou-o para a cidade, afirmando enfaticamente que ninguém podia ficar no castelo, quando tudo estava pronto para partir. Mais tarde, quando a liteira que transportava a mãe entrou no pátio exterior, Joana não se mexeu, ignorando a sua presença e olhando com determinação a paisagem campestre. Isabel coxeou dolorosamente até junto dela, mas Joana não se virou para cumprimentar a mãe. Joana, vem comigo para que possamos falar, chamou-a baixinho. Não, não me afasto nem um passo de Flandres. Isso é absurdo. Vim explicar as razões das diversas demoras, um desapontamento compreensível, e como pretendemos organizar a tua viagem. A voz soava cansada e ofegante. Não me deixo enganar de novo. Dizei o que tendes a dizer aqui mesmo, respondeu Joana, continuando a olhar para longe. Não permitirei que me fales assim, nem pretendo receber ordens de ti. Esperarei por ti na sala da guarda. Terás uns momentos, mas, se após esse tempo não apareceres, presumirei que não desejas ouvir o que tenho a dizer e partirei. Com relutância, Joana juntou-se a ela, permanecendo na soleira, suspeitosa e obstinada. Isabel mirou aquela criatura desgrenhada e desleixada, o rosto sujo e manchado de lágrimas. Era aquela a sua filha, a herdeira de toda a Espanha? Estou pronta a ouvir as vossas razões para me manterdes separada de Felipe. Joana atirou as palavras à mãe. Nunca procuramos... Mentiras, só mentiras, cortou ela. Então, por que não me permitem partir? Por que ordenaram a Fonseca que me detivesse aqui? Para proteger-te da inevitável vergonha que cairia sobre ti ao mostrar ao mundo a tua extraordinária falta de respeito por nós e pelo nosso país.
Não me é demonstrado grande respeito, fazendo-me passar por tola, com os portões fechados, rodeada da minha bagagem sem lugar para ir. Não me interrompas. Temos de ter a certeza de que os tratados de paz são aceitáveis por todos os envolvidos. Surpreende-me que consigais lembrar-vos de todos, uma vez que andais sempre a mudá-los. E quem garante que não ireis quebrá-los? Já o fizestes, traindo o meu Felipe, quando a tinta ainda mal secara no tratado de paz que ele negociara para vós com a França. Ficou profundamente doente durante semanas. Mantendes-me refém para impedir que ele faça novas alianças ou tratados com a França, sei muito bem. Joana, escuta-me. Isabel ofegava. Tinha esperança de que durante este período de espera acabasses por ver o teu papel sob uma luz diferente. Agora chegamos ao cerne da questão. Pretendeis que eu fique aqui. Quereis que eu governe a Espanha, enquanto Felipe governa as suas terras. Não desejais que voltemos jamais a estar juntos. Permiti-me que vos diga que não estou interessada no governo de nenhum país. O meu único desejo é voltar para o meu marido. Retirou do corpete um papel dobrado. Lede-o, lede a parte em que ele diz como me deseja, como precisa de mim.
Joana, não preciso ler esta carta. Tenho a certeza de que ele te quer por perto. Certamente não deseja que fiques aqui sozinha, quando a minha morte já não deve tardar. Essa carta é o resultado do conselho dos seus conselheiros, que lhe explicaram o perigo de tu seres coroada na sua ausência e com o vosso filho Fernando como herdeiro. Como vos atreveis a manchar a carta de Felipe? Não vedes nada para além de coroas? Nunca vedes pessoas com sentimentos? Ou será esperar demais? O vosso pai e eu lutamos muito para construir esta nação. Foi a vontade de Deus levar João, o nosso belo filho, que teria sido rei. Deus decidiu igualmente levar Isabel e o pequeno Miguel. Recaiu sobre ti, Joana, ser a guardiã destas terras, e parte-nos o coração pensar que possam tornar-se nada mais que um apêndice da Áustria porque tu não te interessas em protegê-las. Oh, Joana, mentiria se dissesse que não tenho rezado constantemente para que compreendas onde estão os teus interesses». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-234-231-5.

Cortesia de EPresença/JDACT