Cortesia
de wikipedia, academia e jdact
Com
a devida vénia ao Mestre Jorge André NBV Testos
Um
Estudo de Diplomacia Judicial
«A
presente dissertação propõe uma reflexão, do ponto de vista da diplomática judicial,
sobre o funcionamento jurídico-processual e burocrático de um tribunal superior.
Partindo do estudo e análise de um tipo documental que é produto da função judicial
régia (a carta de sentença), procuraremos reconstituir os seus mecanismos de decisão
e produção escrita. O tema proposto é abrangente e interdisciplinar, mas pouco cultivado;
a nossa formação jurídica, todavia, tornava esta escolha uma fatalidade que acolhemos de
bom grado. Ainda que o território em que se moverá primordialmente esta
dissertação seja a Diplomática (e é esse o seu propósito), seremos forçados a
atravessar os campos da História do Direito, tendo também presente no horizonte
a História das Instituições e a História Medieval. Terrenos bravios, mas
seguramente férteis, estes da diplomática judicial régia. A sua principal
virtualidade, do nosso ponto de vista, será, por força da decomposição do produto
da acção de determinada instância, a reconstrução do plano orgânico, processual
e burocrática da mesma. Tal reconstrução baseia-se na produção concreta e vivida
dessa instância e não (apenas) num retrato normativo abstracto, formando, deste
modo, os alicerces para uma comparação entre a realidade normativa e a
realidade produzida.
O trajecto será marcado por uma
constante relação especular entre o legislado e o praticado, o processual e o
burocrático, a actio (a
acção jurídica) e a conscriptio
(a correspondente redução a escrito): o caminho far-se-á, portanto, por
trajectos paralelos, ainda que a diferentes ritmos, mas que constituem trilhos
alternativos e interligados de uma mesma realidade, visões diferentes do mesmo
objecto, enfim, os dois lados de um espelho documental. A dissertação será
definida com base em dois percursos: por um lado, a recriação da tramitação
processual de um litígio no tribunal superior, desde o impulso que o leva ao juiz
até à decisão e sua execução; por outro, o revisitar dos processos burocráticos
e o pulsar do quotidiano do tribunal que conduzem à redução a escrito do
documento que cristaliza a decisão, a carta de sentença.
Considerámos que, face à paisagem
inóspita que surgia diante de nós, o mais relevante (e também o mais seguro,
confessemos) seria escolher o produto da instância judicial régia, face a
outros centros produtores e decisores em matéria judicial. A Idade Média
teorizou o Rei como um iudex
e as suas tarefas reconduziam-se ao binómio Pax et Iustitia: a função régia identificava-se com o
cumprimento da justiça, de forma a manter a sua comunidade em paz,
designadamente, através do julgamento das contendas suscitadas entre os membros
da comunidade, da aplicação do direito ao caso concreto e da criação de um
conjunto de magistrados que administrassem a justiça. Ainda que este exercício
da função jurisdicional não fosse exclusivo do senhorio régio, a maior complexidade
dos seus mecanismos, que serviriam de modelo para as jurisdições inferiores e
intermédias, o duplo grau de jurisdição, isto é, a possibilidade de julgar em primeira
instância e em sede de recurso, a proliferação de ofícios próprios são apenas alguns
dos motivos que justificam que, ao decidir-se aprofundar esta temática, se comece
pelo modelo régio.
Escolhemos como delimitação
temporal os anos de 1446 e 1512, período a que chamámos o tempo de Ordenações Afonsinas.
Sem entrarmos na vexata quaestio
que tem sido a sua vigência, sabemos que as Ordenações Afonsinas (doravante
O.A.) foram acabadas em 28 de Julho de 1446 e que até ao final de 1512 estavam
já impressos por Valentim Fernandes os Livros I, III, IV e V das Ordenações
Manuelinas (doravante O.M.). Por isso, os anos que medeiam entre estas duas
datas terão sofrido influência, em maior ou menor grau, do monumento
legislativo afonsino.
[…]
O
século XV corresponde ao período da consolidação e estabilização dos órgãos judiciais
régios, nos seus ofícios, competências e autonomização. A existência de um grande
número de jurisdições especializadas (com conhecimento de causas em razão da matéria
ou da pessoa) disseminava os sistemas de controlo judicial por todo o Reino, a hierarquia
de tribunais garantia um sistema de recursos relativamente efectivo que permitia
rever as decisões dos juízes inferiores, a prática processual judicial era
regida por um conjunto complexo de regras fixas e consolidadas e executada por
um núcleo de oficiais que desempenham funções especializadas de natureza
jurídica: em suma, encontra-se instalado um sistema complexo e estável de
administração da justiça, com o seu vértice nos tribunais superiores régios,
que reclamam para si a última palavra, alargando e robustecendo o poder régio.
A autonomização dos tribunais superiores face ao Desembargo ocorre ao longo do
século XIV, tendo o seu ponto de partida no Regimento das Audiências de Afonso IV (1334-1335): os
assuntos fiscais e económico-financeiros são tratados na Audiência da Portaria
(cujas competências serão depois desempenhadas pelos Vedores da Fazenda) e a
separação entre matérias cíveis e crimes, contribui para o aparecimento da Casa
do Cível (já verificado, pelo menos, em 1355), que funcionaria, essencialmente,
como tribunal de recurso dos feitos cíveis do Reino. Mas das suas decisões era
ainda possível recorrer para o tribunal que funcionava na Corte. A Casa da
Justiça da Corte (ou Casa da Suplicação), herdeira da curia regis, era um tribunal
itinerante, que acompanhava o monarca nas suas deslocações. É a produção desta
instituição que será abordada no presente estudo». In Jorge André NBV Testos, Sentenças
Régias em tempo de Ordenações Afonsinas (1446-1512), Um
Estudo de Diplomacia Judicial, Mestrado em Paleografia e Diplomática,
Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Lisboa,
2011.
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