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A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) O padre persignou-se com a mão tremente. No intuito de
aplacar meu tio, num tosco esforço para fazer uma graça, replicou: os seus
bruxedos cabalísticos não me assustam... O meu mestre pôs-se em pé num salto,
fitando frei Carlos. Todos os movimentos na sala pareciam suspensos da sua
cólera. Nunca pratiquei magia!, disse, recorrendo ao termo hebraico kabbalah
ma@sit, a cabala prática, para designar estas práticas proibidas, E o meu
amigo bem o deve saber. Referia-se a uma ocasião em que frei Carlos lhe tinha
pedido um amuleto para matar um caluniador que andava a espalhar boatos sobre a
fidelidade do padre à fé de Moisés. Meu tio tinha recusado, como é evidente,
mas tinha recorrido pessoalmente ao rabi Abraão Zacuto, o astrónomo do rei,
para ver se não seria possível calar o celerado. Meu tio avançou para a lareira
e ficou a observar as unhas contra o lume. O anel de topázio com o sinete em
forma de íbis, símbolo do divino escriba, faiscou com um brilho interior.
Quando Adão e Eva nasceram no Éden tinham o corpo, dos pés
à cabeça, protegido por uma carapaça, como uma armadura, disse ele. Agora, as
unhas são tudo o que nos resta dessa protecção original. Uma ponta
insignificante, não acha? De pouco vale contra as armas da Igreja, acrescentou,
voltando-se para frei Carlos. O padre encolheu os ombros, sacudindo a
insinuação, e baixou os olhos. De nada lhe servirão se eles vêm a saber da
safira. - Preciso dela, disse frei Carlos, com uma nota de tristeza na voz Estou
certo que me compreende. É a última... As palavras foram-se diluindo.
Levantando-se, acrescentou secamente. Tenho de me ir preparar para a missa. Ah,
bastardo!, gritou-lhe meu tio A ficar com uma safira que há-de fazer falta a
nossos filhos! Quando voltou a muralha das suas costas a frei Carlos, o padre
baixou a cabeça como que a pedir o perdão dos restantes e saiu. Também podia
ser mais compreensivo, disse a meu tio,
ele repeliu a censura e então acrescentei: porque estavam a falar em código?
Não era possível que Dona Meneses nos ouvisse lá atrás. Além do mais, ela deve
saber muito bem que continuamos a praticar o judaísmo. Se isso a incomodasse,
há muito que nos tinha denunciado às autoridades. O frade não confia em
ninguém. Até os mortos usam máscara, diz ele. E pelo meu lado, quanto mais
aprendo, mais acho que ele tem razão, coçou a cabeça e franziu o sobrolho Vou
apresentar os meus cumprimentos a Dona Meneses. Lançou-me um olhar imperativo e
saiu. As pessoas esquecem muito depressa,- suspirou tia Ester.
Que quer dizer com isso? Aspergiu o pescoço com água de
rosas, atando-lhe depois em torno um lenço de linho. A peste. Desaparece por
uns anos e as pessoas já imaginam que é qualquer nova maldição do Demónio,
passou a mão tremente pela fronte e pareceu meditar nas suas palavras Talvez
seja uma benção o podermos esquecer. Imagina se ... Eu não esqueço! Nem uma palavra,
nem um gesto, nem uma única ferida! O rosto de tia Ester contraiu-se; sabia que
me referia a meu pai e a meu irmão mais velho, Mardoqueu. No Inverno de 5263,
pouco mais que três anos antes, a faca da peste tinha-lhes arrancado a pele,
deixando-os expostos aos ventos húmidos de Kislev. Meu pai, agonizando cheio de
feridas e pústulas abertas, tiritava de morte no sexto dia de Hanukkab. Passado
um mês, o esqueleto vivo que tinha sido Mardoqueu morria-me nos braços. Ficámos
em silêncio, minha tia e eu. Instantes depois, dona Meneses deixava a nossa
casa com o habitual cesto de fruta que sempre levava destas visitas. Vou ver se
Cinfa precisa de ajuda na loja, disse tia Ester, e saiu da sala no seu passo
rígido, ligeiramente inclinada para diante. Fiquei a observar Judas que
brincava na entrada com o pião até que meu tio se voltou para mim e me disse: preciso
da tua ajuda na cave. Passando o alçapão, descemos os cinco degraus de pedra grosseira, um por cada livro da Tora,
até um pequeno patamar com uma menora de mosaicos verdes e amarelos no meio.
Depois de outra passagem, descemos ainda doze pequenos degraus de alvenaria, um
por cada livro dos profetas. Desde o encerramento forçado da nossa sinagoga no
ano cristão de 1497, tínhamos aqui o nosso templo. Ao descermos, tirei de uma
prateleira um kipá azul e pu-lo na cabeça. Meu tio puxou dos ombros o seu xaile
ritual e cobriu a cabeça com ele, formando um capuz. Juntos entoámos um
cântico: pela Tua infinita misericórdia, entrarei em Tua casa.
Era uma cave baixa, com um
pavimento de cinco passos de largo e o dobro de comprido, revestido com as
mesmas toscas lajes de xisto da entrada. Poderia testemunhar pelo menos mil
anos de cânticos e no ar gélido e bafiento, hermeticamente contido naquelas
paredes onde mal se vislumbravam os azulejos com formas entrelaçadas em azul e
amarelo, parecia pairar o perfume de memórias antigas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT