segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Histórias Íntimas. Mary del Priore. «Não faltaram marcas do apetite masculino em relação à morena ou mulata na literatura dos séculos XVIII e XIX. O riso de pérolas e corais, os olhos de jabuticaba, as negras franjas…»

jdact e wikipedia

Da Colónia ao Império
Querida Serpente
«(…) Era preciso enfear o corpo para castigá-lo. Os vícios e as fervenças da carne, ou seja, o desejo erótico, tinham como alvo o que a Igreja considerava ser barro, lodo e sangue imundo. Onde tudo era feio porque pecado. Isso, porque a mulher, a velha amiga da serpente e do Diabo, era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma dos homens. Aquela bem aparecida, sinónimo no século XVII para formosa, era a pior! Logo, modificar a aparência ou melhorá-la com artifícios implicava aumentar essa inclinação pecaminosa. Mais: significava, também, alterar a obra do Criador, que modelara seus filhos à sua imagem e semelhança. Interferência impensável, diga-se de passagem. Vários opúsculos circulavam tentando impedir as vaidades femininas. Os padres confessores, por exemplo, ameaçavam com penas infernais: estar à janela cheia de bisuntos, tingir o sobrolho com certo ingrediente e fazer o mesmo à cara com tintas brancas e vermelhas, trazer boas meias e fingir um descuido para as mostrar, rir de manso para esconder a podridão ou a falta dos dentes e comer mal para vestir bem. Apesar de tantas advertências, a mulher sempre quis seduzir, fazendo-se bela. Se a Igreja não lhe permitia tal investimento, a cultura a incentivará a forjar os meios para transformar-se. Os dispositivos de embelezamento, assim como o cortejo de sonhos e ilusões que os acompanhava, eram de conhecimento geral. O investimento maior concentrava-se no rosto, lugar por excelência da beleza. As outras partes do corpo, com excepção dos pés, eram menos valorizadas. Consequência directa dessa valorização, o embelezamento facial recorria a certa incipiente técnica cosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele com remédios. Seguia-se a maquilhagem com pós, bisuntos e tintas vermelhas e brancas, como já se viu.
Não faltaram marcas do apetite masculino em relação à morena ou mulata na literatura dos séculos XVIII e XIX. O riso de pérolas e corais, os olhos de jabuticaba, as negras franjas e a cor do buriti são os signos sedutores dessa fêmea que convida ao paladar, à deglutição, ao tacto. São elas as verdadeiras presas do desejo masculino, mulheres-caça, que o homem persegue e devora sexualmente. Morenice e robustez eram, então, padrões de erotismo velado e de beleza. Aos cuidados com a beleza do rosto somaram-se outros, relativos à roupa. O carácter ambivalente dessa última, desvelando ao cobrir as partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução. Montaigne protestava: porque será que as mulheres cobrem com tantos impedimentos as partes onde habita o nosso desejo? Para que servem tais bastiões com os quais elas armam os seus quadris, se não a enganar nosso apetite, e a nos atrair ao mesmo tempo em que nos afastam? O pudor aumentava a cobiça que deveria atenuar. E essa obsessão de ver o que não se mostrava durou. Anos mais tarde, o escritor francês Anatole France criou também uma parábola sobre o tema em A ilha dos pinguins. Um missionário, disposto a cobrir a nudez das aves que convertera, resolve vestir uma delas, e como esta passa a ser perseguida pelo conjunto dos seus semelhantes, loucos de desejo, conclui: o pudor comunica às mulheres uma atracção irresistível.
Mas desejar ardentemente uma mulher trazia riscos. Acreditava-se que o desequilíbrio ou a corrupção dos humores, graças à secreção da bile negra, explicasse uma desatinada erotização. Dela provinham os piores crimes e os mais violentos casos amorosos. Apesar do medo de castigos divinos, a razão não conseguia, muitas vezes, controlar o calor vindo do coração. Mas sem o controle de suas paixões físicas, homens e mulheres se perdiam. Pois foi o sentimento fora de controle, dando em erotismo desenfreado, que consolidou a ideia do desejo sexual como enfermidade. No final do Renascimento, longos tratados médicos são escritos sobre o tema: O antídoto do amor, de 1599, ou A genealogia do amor, de 1609, são bons exemplos desse tipo de literatura. Os seus autores tanto se interessam pelas definições filosóficas do amor quanto pelos diagnósticos e tratamentos envolvidos na sua cura. Todos, também, recorrem a observações misturadas a alusões literárias, históricas e científicas para concluir que o amor erótico, amor-hereos ou melancolia erótica, era o resultado dos humores queimados pela paixão». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT