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e wikipedia
Da
Colónia ao Império
Querida Serpente
«(…)
Era preciso enfear o corpo para castigá-lo. Os vícios e as fervenças da carne,
ou seja, o desejo erótico, tinham como alvo o que a Igreja considerava ser barro,
lodo e sangue imundo. Onde tudo era feio porque pecado. Isso, porque a mulher,
a velha amiga da serpente e do Diabo, era considerada, nesses tempos, como um
veículo de perdição da saúde e da alma dos homens. Aquela bem aparecida, sinónimo
no século XVII para
formosa, era a pior! Logo, modificar a aparência ou melhorá-la com artifícios
implicava aumentar essa inclinação pecaminosa. Mais: significava, também,
alterar a obra do Criador, que modelara seus filhos à sua imagem e semelhança.
Interferência impensável, diga-se de passagem. Vários opúsculos circulavam
tentando impedir as vaidades femininas. Os padres confessores, por exemplo, ameaçavam
com penas infernais: estar à janela cheia de bisuntos, tingir o sobrolho com
certo ingrediente e fazer o mesmo à cara com tintas brancas e vermelhas, trazer
boas meias e fingir um descuido para as mostrar, rir de manso para esconder a
podridão ou a falta dos dentes e comer mal para vestir bem. Apesar de tantas
advertências, a mulher sempre quis seduzir, fazendo-se bela. Se a Igreja não
lhe permitia tal investimento, a cultura a incentivará a forjar os meios para
transformar-se. Os dispositivos de embelezamento, assim como o cortejo de
sonhos e ilusões que os acompanhava, eram de conhecimento geral. O investimento
maior concentrava-se no rosto, lugar por excelência da beleza. As outras partes
do corpo, com excepção dos pés, eram menos valorizadas. Consequência directa
dessa valorização, o embelezamento facial recorria a certa incipiente técnica
cosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele com remédios.
Seguia-se a maquilhagem com pós, bisuntos e tintas vermelhas e brancas, como já
se viu.
Não faltaram marcas do apetite
masculino em relação à morena ou mulata na literatura dos séculos XVIII e XIX. O riso de pérolas e corais, os
olhos de jabuticaba, as negras franjas e a cor do buriti são os signos
sedutores dessa fêmea que convida ao paladar, à deglutição, ao tacto. São elas
as verdadeiras presas do desejo masculino, mulheres-caça, que o homem persegue
e devora sexualmente. Morenice e robustez eram, então, padrões de erotismo
velado e de beleza. Aos cuidados com a beleza do rosto somaram-se outros,
relativos à roupa. O carácter ambivalente dessa última, desvelando ao cobrir as
partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento
decisivo e um obstáculo à sedução. Montaigne protestava: porque será que as
mulheres cobrem com tantos impedimentos as partes onde habita o nosso desejo?
Para que servem tais bastiões com os quais elas armam os seus quadris, se não a
enganar nosso apetite, e a nos atrair ao mesmo tempo em que nos afastam? O
pudor aumentava a cobiça que deveria atenuar. E essa obsessão de ver o que não
se mostrava durou. Anos mais tarde, o escritor francês Anatole France criou
também uma parábola sobre o tema em A
ilha dos pinguins. Um missionário, disposto a cobrir a nudez das
aves que convertera, resolve vestir uma delas, e como esta passa a ser
perseguida pelo conjunto dos seus semelhantes, loucos de desejo, conclui: o
pudor comunica às mulheres uma atracção irresistível.
Mas
desejar ardentemente uma mulher trazia riscos. Acreditava-se que o
desequilíbrio ou a corrupção dos humores, graças à secreção da bile negra,
explicasse uma desatinada erotização. Dela provinham os piores crimes e os mais
violentos casos amorosos. Apesar do medo de castigos divinos, a razão não
conseguia, muitas vezes, controlar o calor vindo do coração. Mas sem o controle
de suas paixões físicas, homens e mulheres se perdiam. Pois foi o sentimento
fora de controle, dando em erotismo desenfreado, que consolidou a ideia do desejo
sexual como enfermidade. No final do Renascimento, longos tratados médicos são
escritos sobre o tema: O antídoto do
amor, de 1599, ou A genealogia do amor, de 1609, são bons exemplos desse tipo de
literatura. Os seus autores tanto se interessam pelas definições filosóficas do
amor quanto pelos diagnósticos e tratamentos envolvidos na sua cura. Todos,
também, recorrem a observações misturadas a alusões literárias, históricas e
científicas para concluir que o amor erótico, amor-hereos ou melancolia erótica, era o resultado
dos humores queimados pela paixão». In Mary del Priore, Histórias íntimas,
Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São
Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.
Cortesia
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