segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Às Portas do Inferno. Domingos Amaral. «Ninguém sabia, mas o Velho disse que aqueles casebres, assim tão degradados, deviam estar abandonados há centenas de anos. Porque vieram até aqui os galegos?»

jdact

Soure. Julho de 1132
«(…) Os templários de Soure benzeram-se e rezaram preces silenciosas. Depois de desmontarem, confirmaram que os mortos eram companheiros do primeiro sem cabeça, que devia ter sido enviado por Zhakaria como mensageiro da matança. Por respeito aos defuntos, cavaram uma cova, mas mesmo para homens habituados à guerra aquele foi um trabalho horrível. Os galegos haviam sido empalados vivos, tinham as lanças enfiadas pelos ânus acima, cortando os músculos e as entranhas enquanto eles morriam, o que se notava pela forma como se haviam contraído, explicou o Velho, dizendo que só depois os haviam degolado. Zhakaria está furioso. Esta violência não é hábito dele, concluiu o Rato, depois de sepultarem os galegos. Preocupado, Ramiro observou o rio Nabão e as ruínas. Alguém sabe corno se chama este sítio?
Ninguém sabia, mas o Velho disse que aqueles casebres, assim tão degradados, deviam estar abandonados há centenas de anos. Porque vieram até aqui os galegos?, interrogou-se Ramiro. Sem maneira de esclarecer o mistério, os templários decidiram regressar a Soure e montaram de novo os seus cavalos. O bastardo de Paio Soares foi o último a fazê-lo, mantendo-se algum tempo a examinar as redondezas. Pai, foi aqui que haveis vindo? Embora fosse de estatura média, Ramiro andava sempre muito direito, parecendo mais alto do que era. Tinha os ombros largos e as ancas sólidas e o Rato admirou-o, imaginando-o um comandante militar nobre, às portas da glória. Porém, espantou-se quando apenas ouviu Ramiro murmurar, para si próprio: pai, é aqui? Subitamente, ouviu-se um esgar, seguido de um ruído de alguém a tombar. Ramiro e o Rato voltaram-se para trás e viram o Velho no chão. Caíra do cavalo e parecia não só magoado, como deveras surpreendido, como se o corpo o tivesse traído. Com pena, Ramiro desmontou, correu para ele e percebeu o quanto a idade lhe pesava. Orgulhoso, o Velho afastou-o e tentou levantar-se sozinho, mas a sua perna direita cedeu e quase voltou a tombar, só não caindo desamparado porque Ramiro não deixou.
Preocupado, o Rato, que também acorrera, perguntou: companheiro, que se passa? O Velho fechou os olhos, estava com dores. Então, o Peida Gorda, apesar da sua lendária timidez, disse: é a minha vez de vos ajudar. Anos antes, o Velho sarara-lhe a ferida de uma flecha e o tempo da retribuição havia chegado. Aquele homem forte e grande, cujo rabo mais parecia um barril e cujo tronco tinha a largura de um penedo granítico, levantou o combalido e colocou-o a cavalo. Desconsolado, quase envergonhado, o Velho baixou os olhos. Chegou a minha hora. Declarou que a sua carreira de soldado estava no fim. Ninguém sabia quantos anos ele já vivera, mas Ramiro calculava que tivesse mais de oitenta invernos no lombo, pois combatera com El Cid, sessenta anos antes. Agora, dizia-se farto de piolhos e feridas, epidemias e casotas, empalados e decapitados». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT