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Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) Era uma despedida. Uma
partida incógnita, indeterminada, da qual não conhecia o desfecho. E quem
conhecia o quê de alguma coisa? Se o homem planeava, Deus sorria. Sentia-se
bem, plácido. E antes de virar as costas à Ringstrasse rasgou o envelope e o
papel e deitou-os ao lixo. Que me custa ir mais cedo e ajudar um amigo?,
murmurou enquanto se encaminhava para a residência. Dar sem olhar a quem. Quem
tivesse olhado por cima do ombro de Hans Schmidt enquanto ele relia o texto, e
ninguém o fez, poderia não perceber o garatujo, escrito à mão, em letra apressada,
mas a assinatura tremida não enganava ninguém: Tarcísio Bertone, S.D.B.
Nos passos lentos pesavam os
anos. Podia considerar-se bastante bem conservado para a idade, mas não
escondia de si próprio o vigor trôpego que tentava esconder a todo o custo. Os
passos trouxeram-no longe, tão longe, a lugares que nunca almejou em jovem,
imberbe idade em que se tem as vistas curtas que se julgam mais compridas do
que são. A pequena capela era para usufruto próprio, só seu ou de quem desejasse
convidar. A estátua de um Cristo ao fundo, no altar, marcava contundentemente o
espaço. Dois metros de granito de Carrara ao qual o escultor, atribuía-se a autoria
a Miguel Ângelo, retirara o excesso de pedra para descobrir, por baixo, este
imenso Cristo. A cabeça pendia para o lado direito num esgar de sofrimento que
se perpetrava há 400 anos. A crueldade humana. Certamente que ele não via nenhuma
estátua colocada a descoberto por algum escultor, mesmo o mais renomado do género
artístico. Era o Cristo em pessoa, em toda a sua divina figura, quem via e a
quem orava quando entrava na capela e se ajoelhava aos seus pés luzidios.
Fazia-o impreterivelmente todas as manhãs e à noite, mas este final de dia em
que se arrastava pelo corredor que a ela conduzia pedia uma oração especial. Um
pedido de iluminação extraordinária, para que o auxiliasse na manobra das suas
almas debaixo dessa luz.
Arquejava devido ao esforço e à
preocupação. Não era um final de tarde como os outros. Nunca eram iguais, mas
este trazia um peso adicional. Eminência, chamou Trevor, um dos assistentes
mais jovens, enfiado na sua batina negra, à porta do gabinete. Eminência
levantou a mão num gesto ríspido e rude que pedia silêncio e paz e entrou pela
porta da capela que ficava em frente. Ajoelhou-se aos pés do Cristo angélico,
fez o sinal da cruz e baixou a cabeça mais em jeito de clemência do que reverência,
a não ser que uma arrastasse a outra. Sibilou uma litania ininteligível durante
alguns instantes até se aperceber que não estava sozinho. Não precisou de olhar
para saber quem era. Não se pode rezar em paz?, protestou sem olhar para trás. Não
é hora de rezar, Tarcísio, advertiu o outro que trajava de forma idêntica, o
escarlate uniforme dos Príncipes da Igreja. Talvez não seja. Mas é, certamente,
algo que fazemos de menos, argumentou Tarcísio.
Não olhes para o que eu faço,
olha para o que eu digo, citou o outro em tom de conselho. Tarcísio repetiu o
devoto sinal da cruz e ergueu-se. Virou-se aquele que lhe perturbou a oração
para logo baixar o olhar. Isto vai ter consequências, William, disse. Temos que
minimizá-las. A que preço, William?, alçou a voz abespinhado. Ao preço que for,
proferiu o outro com solidez. Temos de estar preparados para tudo, custe o que
custar, alertou. Não sei se tenho forças, confessou Tarcísio. Deus dá o fardo,
mas também a força para o suportar. Chegaste longe. Olha onde a tua força te
trouxe. Olha onde Deus quis que o servisses. A voz de William era de estímulo
sincero. Acreditava nas capacidades de Tarcísio.
Colocou-lhe
uma mão terna sobre o ombro. E o teu caminho está longe do fim. Ele quer muito
mais de ti. Mais alto. Sabes muito bem disso. Tarcísio tossiu incomodado. Não sabemos
o que Ele quer depois. Tapou o rosto com as mãos. Nem sabemos o que Ele quer
agora. Tarcísio denotava desnorteamento, uma ovelha perdida no meio das outras
tresmalhadas. William colocou ambas as mãos sobre os ombros de Tarcísio e
fitou-o com uma expressão dura. Olha para mim». In Luís Miguel Rocha, A Mentira
Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
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