sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

A Feiticeira de Florença. Salman Rushdie. «Ao amanhecer, os assombrosos palácios de arenito da nova cidade da vitória de Akbar, o Grande, pareciam feitos de fumaça vermelha. A maior parte das cidades começa dando a impressão de ser eternas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas mesmo ao final de seu grande furto Uccello não estava contente, porque o maior tesouro de todos lhe escapara. Era tudo o que podia fazer para esconder a sua agitação. O acaso havia colocado uma grande oportunidade ao seu alcance e ele não podia deixar que escapasse. Mas onde estava a coisa? Ele tinha olhado cada centímetro dos aposentos do capitão e ela continuava escondida. Maldição! Será que o tesouro estava sob encantamento? Teria sido feito invisível para assim escapar dele? Depois da breve parada do Scáthach em Diu, o navio partiu depressa para Surat, de cuja cidade (recentemente alvo de uma visita punitiva do próprio imperador Akbar) lorde Hauksbank planeava iniciar a sua viagem por terra à corte Mogol. E na noite em que chegaram a Surat (que estava em ruínas, ainda fumegante da ira do imperador), quando Benza-Deus Hawkins cantava com toda alma e a tripulação estava bêbada de rum, celebrando o fim da longa viagem por mar, o buscador debaixo do convés por fim encontrou o que procurava: o oitavo painel, um a mais que o número mágico, sete, um a mais do que qualquer ladrão podia esperar. Por trás dessa porta derradeira estava a coisa que ele procurava. Então, depois de um último acto, ele se juntou aos festejadores no convés e cantou e bebeu com mais ânimo que qualquer homem a bordo. Porque possuía o segredo de permanecer acordado quando os olhos de nenhum outro homem conseguiam ficar abertos, chegou o momento, nas primeiras horas da manhã, em que pode deslizar para terra num dos escaleres do navio e desaparecer, como um fantasma, Índia adentro. Muito antes de Benza-Deus Hawkins dar o alarme, ao descobrir lorde Hauksbank desse Nome, de lábios azulados no seu último catre de navio, liberto para sempre dos tormentos da sua voraz finocchiona, Uccello di Firenze havia desaparecido, deixando para trás apenas esse nome como a pele abandonada de uma cobra. Junto ao peito do viajante sem nome estava o tesouro dos tesouros, a carta de próprio punho de Elizabeth Tudor da Inglaterra para o Imperador da Índia, que seria o seu abre-te-sésamo, o seu passaporte para o mundo da corte mughal. Ele era o embaixador da Inglaterra agora.

Ao amanhecer, os assombrosos palácios de arenito
Ao amanhecer, os assombrosos palácios de arenito da nova cidade da vitória de Akbar, o Grande, pareciam feitos de fumaça vermelha. A maior parte das cidades começa dando a impressão de ser eternas quase desde que nascem, mas Sikri iria sempre parecer uma miragem. Quando o sol chegava ao zénite, a grande clava do calor diurno se abatia sobre as pedras das ruas, ensurdecendo os ouvidos humanos para qualquer som, fazendo o ar tremer como um antílope assustado, enfraquecendo a fronteira entre a sanidade e o delírio, entre o inventado e o real. Até mesmo o imperador sucumbia à fantasia. Rainhas flutuavam dentro de seus palácios como fantasmas, sultanas rajput e turcas brincando de pegador. Uma dessas personagens reais não existia de verdade. Era uma esposa imaginária, sonhada por Akbar do jeito que crianças solitárias sonham com amigos imaginários, e apesar da presença de muitas consortes vivas, embora flutuantes, o imperador acreditava que as esposas reais é que eram fantasmas e a amada não existente é que era real. Ele lhe deu um nome, Jodha, e nenhum homem ousava contradizer-lhe. Dentro da privacidade dos aposentos das mulheres, dentro dos corredores sedosos do seu palácio, a influência e o poder dela cresciam. Tansen escreveu canções para ela e no estúdio-escritório sua beleza era celebrada em pinturas e versos. O próprio mestre Abdus Samad, o persa, a retratou, pintando-a de memória de um sonho sem nunca ter olhado o seu rosto, e quando o imperador viu o trabalho bateu as mãos diante da beleza que brilhava na página.
Você captou tudo dela, a vida, gritou, e Abdus Samad relaxou e parou de achar que a sua cabeça estava um tanto frouxa no pescoço; e depois que essa obra visionária do mestre do atelier do imperador foi exposta, toda a corte sabia que Jodha era real, e os maiores cortesãos, os Navratna, ou Nove Estrelas, todos admitiram não apenas a sua existência, mas também a sua beleza, a sua sabedoria, a graça dos seus movimentos e a maciez de sua voz. Akbar e Jodhabai! Ah, ah! A história de amor daquela era. A cidade por fim foi terminada, a tempo do aniversário de quarenta anos do imperador». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-692-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT