domingo, 8 de dezembro de 2019

A Religiosa. Denis Diderot. «Era tarde. Durante grande parte da noite sonhei com o que acabavam de me revelar e o mesmo aconteceu no dia seguinte. Não tinha pai; os escrúpulos tinham-me arrancado a minha mãe»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Para mais, não lhe escondo que o abandono aparente da sua mãe, a sua obstinação em fechá-la e outras coisas que agora não recordo, mas das quais soube há algum tempo, produziram no seu pai o mesmo efeito que tiveram em si: suspeita sobre o seu nascimento e tem suspeitas acerca da sua mãe; não é segredo que já não tem dúvidas de que só é sua filha segundo a lei que atribui os descendentes a quem tem o título de esposo. Vamos, menina, é boa e sensata. Pense no que acaba de saber. Levantei-me e comecei a chorar. Vi que também ele se havia enternecido; levantou, suavemente, os olhos aos céu e acompanhou-me. Fui ter com a criada, subimos as duas para a carruagem e voltámos para casa.
Era tarde. Durante grande parte da noite sonhei com o que acabavam de me revelar e o mesmo aconteceu no dia seguinte. Não tinha pai; os escrúpulos tinham-me arrancado a minha mãe; as precauções que tinham sido tomadas para que não pudesse aspirar a um nascimento legítimo; nenhuma esperança, nenhum recurso. Talvez, se mo tivessem explicado antes, depois de terem casado as minhas duas irmãs, se me tivessem deixado em casa, que era muito frequentada, talvez tivesse encontrado alguém que achasse dote suficiente o meu carácter, o meu engenho e os meus talentos. Isso não era completamente impossível, mas o escândalo que eu tinha dado no convento tornava tudo mais difícil. Só uma firmeza fora do comum permitia que uma jovem de dezassete ou dezoito anos tivesse chegado àquele extremo. E os homens apreciam muito esta qualidade, mas preferem não a encontrar nas mulheres com quem casam. No entanto, era um recurso que se podia experimentar antes de tomar outras medidas. Decidi confiar-me à minha mãe e pedi-lhe uma entrevista, que me foi concedida.
Era Inverno. Estava sentada à lareira, num cadeirão; o ar severo, os olhos fixos e a expressão imóvel. Aproximei-me, atirei-me a seus pés e pedi-lhe perdão por todas as minhas culpas. Vai merecê-lo ou não, respondeu-me, depende do que me diga. Levante-se. O seu pai está ausente; tem tempo para se explicar. Viu o padre Serafim, já sabe quem é e o que pode esperar de mim, se é que não quer castigar-me toda a minha vida por uma falta que cometi e que já paguei com juros. Pois bem, filha, o que espera de mim? O que é que resolveu?
Mãe, respondi-lhe, sei que nada tenho e que a nada devo aspirar. Estou longe de querer aumentar as suas penas, sejam elas quais forem; talvez me tivesse encontrado mais submissa à sua vontade se me tivesse contado algumas circunstâncias das quais era difícil eu suspeitar. Mas, finalmente, sei quem sou e só me resta fazer aquilo que deve fazer alguém no meu estado. Já não me surpreendem as diferenças que fizeram entre mim e as minhas irmãs. Reconheço que são justas e concordo com elas; mas continuo a ser sua filha: trouxe-me no seio e espero que não se esqueça disso.
Ai de mim!, exclamou ela, vivamente. Fiz por si tudo o que me foi possível! Está bem, mãe, disse-lhe eu, devolva-me a sua bondade; devolva-me a sua presença; devolva-me a ternura daquele que acredita ser meu pai. Pouco falta, exclamou ela, para que também ele esteja tão seguro do seu nascimento como nós as duas. Sempre que está consigo oiço as suas reprovações; é a mim que as dirige, pela dureza que emprega consigo. Nunca espere dele sentimentos próprios de um pai terno. Além de mais, tenho de lhe confessar que me recorda uma traição, uma ingratidão tão odiosa de outro homem que não posso suportar a ideia; esse homem interpõe-se, sem cessar, entre nós as duas, afastando-me, e o ódio que lhe tenho a ele estende-se a si. Como!, disse-lhe. Só posso esperar de si e do senhor Simonin que me tratem como uma estranha, uma desconhecida que recolheram por caridade?
Nem eu nem ele podemos fazer mais nada. Minha filha, não envenene a minha vida por mais tempo. Se não tivesse irmãs, eu sei o que podia fazer; mas tem duas, e ambas têm uma família numerosa. Há muito que a paixão se acabou; estou consciente outra vez. Mas, e aquele a quem devo a vida? Já não existe. Morreu sem se lembrar de si, e essa é a menor das suas faltas... Neste ponto, o seu rosto alterou-se; os olhos faiscavam-lhe e a indignação apoderou-se dela; queria falar, mas não pôde articular uma palavra, porque o tremor dos lábios a impedia. Estava sentada; baixou a cabeça até às mãos para me esconder o violento arrebatamento que a tomou. Permaneceu assim algum tempo e, depois, levantou-se. Deu algumas voltas pelo quarto sem dizer palavra; continha as lágrimas, que caíam com dificuldade, e dizia: o monstro! Se dependesse dele, tinha-a afogado no meu seio por todas as penas que me causou; mas Deus conservou-nos uma à outra para que a mãe expiasse a falta por meio da filha... Minha filha, não tem nada e não vai ter nunca nada. O pouco que lhe posso dar tirei-o às suas irmãs; são estas as consequências de uma fraqueza. No entanto, na hora da minha morte espero não ter nada de que arrepender-me, pois ganhei o seu dote com as minhas economias». In Denis Diderot, A Religiosa, 1796, Editora Publicações Europa-América, 1973, ISBN: 978-972-101-915-7.

Cortesia de EPEuropa-América/JDACT