Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Para
mais, não lhe escondo que o abandono aparente da sua mãe, a sua obstinação em
fechá-la e outras coisas que agora não recordo, mas das quais soube há algum
tempo, produziram no seu pai o mesmo efeito que tiveram em si: suspeita sobre o
seu nascimento e tem suspeitas acerca da sua mãe; não é segredo que já não tem
dúvidas de que só é sua filha segundo a lei que atribui os descendentes a quem
tem o título de esposo. Vamos, menina, é boa e sensata. Pense no que acaba de
saber. Levantei-me e comecei a chorar. Vi que também ele se havia enternecido;
levantou, suavemente, os olhos aos céu e acompanhou-me. Fui ter com a criada,
subimos as duas para a carruagem e voltámos para casa.
Era tarde.
Durante grande parte da noite sonhei com o que acabavam de me revelar e o mesmo
aconteceu no dia seguinte. Não tinha pai; os escrúpulos tinham-me arrancado a
minha mãe; as precauções que tinham sido tomadas para que não pudesse aspirar a
um nascimento legítimo; nenhuma esperança, nenhum recurso. Talvez, se mo
tivessem explicado antes, depois de terem casado as minhas duas irmãs, se me
tivessem deixado em casa, que era muito frequentada, talvez tivesse encontrado
alguém que achasse dote suficiente o meu carácter, o meu engenho e os meus
talentos. Isso não era completamente impossível, mas o escândalo que eu tinha
dado no convento tornava tudo mais difícil. Só uma firmeza fora do comum
permitia que uma jovem de dezassete ou dezoito anos tivesse chegado àquele
extremo. E os homens apreciam muito esta qualidade, mas preferem não a
encontrar nas mulheres com quem casam. No entanto, era um recurso que se podia
experimentar antes de tomar outras medidas. Decidi confiar-me à minha mãe e
pedi-lhe uma entrevista, que me foi concedida.
Era
Inverno. Estava sentada à lareira, num cadeirão; o ar severo, os olhos fixos e
a expressão imóvel. Aproximei-me, atirei-me a seus pés e pedi-lhe perdão por
todas as minhas culpas. Vai merecê-lo ou não, respondeu-me, depende do que me
diga. Levante-se. O seu pai está ausente; tem tempo para se explicar. Viu o
padre Serafim, já sabe quem é e o que pode esperar de mim, se é que não quer
castigar-me toda a minha vida por uma falta que cometi e que já paguei com
juros. Pois bem, filha, o que espera de mim? O que é que resolveu?
Mãe,
respondi-lhe, sei que nada tenho e que a nada devo aspirar. Estou longe de
querer aumentar as suas penas, sejam elas quais forem; talvez me tivesse
encontrado mais submissa à sua vontade se me tivesse contado algumas
circunstâncias das quais era difícil eu suspeitar. Mas, finalmente, sei quem
sou e só me resta fazer aquilo que deve fazer alguém no meu estado. Já não me
surpreendem as diferenças que fizeram entre mim e as minhas irmãs. Reconheço
que são justas e concordo com elas; mas continuo a ser sua filha: trouxe-me no
seio e espero que não se esqueça disso.
Ai de mim!,
exclamou ela, vivamente. Fiz por si tudo o que me foi possível! Está bem, mãe,
disse-lhe eu, devolva-me a sua bondade; devolva-me a sua presença; devolva-me a
ternura daquele que acredita ser meu pai. Pouco falta, exclamou ela, para que
também ele esteja tão seguro do seu nascimento como nós as duas. Sempre que
está consigo oiço as suas reprovações; é a mim que as dirige, pela dureza que
emprega consigo. Nunca espere dele sentimentos próprios de um pai terno. Além
de mais, tenho de lhe confessar que me recorda uma traição, uma ingratidão tão
odiosa de outro homem que não posso suportar a ideia; esse homem interpõe-se,
sem cessar, entre nós as duas, afastando-me, e o ódio que lhe tenho a ele
estende-se a si. Como!, disse-lhe. Só posso esperar de si e do senhor Simonin
que me tratem como uma estranha, uma desconhecida que recolheram por caridade?
Nem
eu nem ele podemos fazer mais nada. Minha filha, não envenene a minha vida por
mais tempo. Se não tivesse irmãs, eu sei o que podia fazer; mas tem duas, e
ambas têm uma família numerosa. Há muito que a paixão se acabou; estou
consciente outra vez. Mas, e aquele a quem devo a vida? Já não existe. Morreu
sem se lembrar de si, e essa
é a menor das suas faltas... Neste ponto, o seu rosto alterou-se; os olhos
faiscavam-lhe e a indignação apoderou-se dela; queria falar, mas não pôde
articular uma palavra, porque o tremor dos lábios a impedia. Estava sentada;
baixou a cabeça até às mãos para me esconder o violento arrebatamento que a
tomou. Permaneceu assim algum tempo e, depois, levantou-se. Deu algumas voltas
pelo quarto sem dizer palavra; continha as lágrimas, que caíam com dificuldade,
e dizia: o monstro! Se
dependesse dele, tinha-a afogado no meu seio por todas as penas que me causou;
mas Deus conservou-nos uma à outra para que a mãe expiasse a falta por meio da
filha... Minha filha, não tem nada e não vai ter nunca nada. O pouco que lhe
posso dar tirei-o às suas irmãs; são estas as consequências de uma fraqueza. No
entanto, na hora da minha morte espero não ter nada de que arrepender-me, pois
ganhei o seu dote com as minhas economias». In
Denis Diderot, A Religiosa, 1796, Editora Publicações Europa-América, 1973, ISBN: 978-972-101-915-7.
Cortesia
de EPEuropa-América/JDACT