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Dor
que enlouquece
«(…)
A multidão olhava para aqueles dois, esperançada como se aquele homem de gorra
negra e cabelos de neve fosse o símbolo imaculado da Pátria, que os de Castela
pretendiam matar, e o outro, um bastardo real, monge-cavaleiro de vinte e seis
anos, representasse a maior promessa e a mais rútila esperança de um Portugal
remoçado, mais forte, mais brilhante, de mais pura e altiva alma, emergido daquela
decadência pelos milagres de esforço de uma revolução. Viva o nosso Messias!,
gritaram algumas mulheres comovidamente. E envolveram, num olhar de sonho,
aquele homem jovem, de amplas costas, trigueiro e rubro como os galeotes da
Ribeira e os picos das montanhas; de rosto largo numa forte expressão de
energia; naquela cabeça de pensador o bacinete emplumado dos campeadores
fidalgos, nos ombros largos o manto branco dos Cavaleiros de Avis e sobre a
cota de armas o estreito escapulário com a esguia cruz verde do mestrado da
Ordem, estampada naquela brancura do hábito, a lembrar as toalhas dos altares e
a bandeira da Nação.
Messias da
Pátria para a redimir, filho de um rei para ascender ao trono, se a Nação
vencesse, filho de uma mulher do povo, como o aclamavam febrilmente. Que Deus
vos guarde, Senhor!, clamava a ralé num voto fervoroso, de braços erguidos como
para o abraçar, e a trapagem de burel agitava-se-lhe sobre o peito arquejante. Deus
vos ouça, gente leal, e a todos nos mantenha na santa defesa de Portugal,
volveu-lhes o Mestre, pondo neles, afectuosamente, os seus olhos negros,
penetrantes, e esboçando nos lábios rubros um sorriso de familiaridade, que lhe
modificava as linhas duras do longo rosto, quase quadrangular, de queijo
proeminente e barba escanhoada, conforme o preceito imposto aos monges cavaleiros.
Amanhã
haveremos de ter dura luta. A armada que veio do Porto entrará e nós de cá lhe
daremos uma mão, disse o Mestre. Grande armada, Senhor?, perguntou um mesteiral,
de barrete na mão. Dezassete naus e outras tantas galés. Mestre e Defensor
nosso, bom socorro será, mas a outra de Castela tem mais do dobro!
Respondeu-lhe. Deus estará connosco, e pela nossa causa a alma e o sangue de
nós todos. Ficai prevenidos. Ao romper da manhã, estaremos todos onde for
preciso. Conto convosco; contai comigo. El-rei de Castela não levará a herança
que vem aqui buscar. Só Lisboa lha poderia entregar, e nem vós nem eu
deixaremos que a tome. Mestre e Defensor, honradas palavras dissestes!, acudiu
Afonso Eanes na sua voz dominadora. A cidade não se rende e a herança não se
entrega! Assim o queremos todos e assim será com a ajuda de Deus!, confirmou o
Mestre com uma grande energia sugestiva.
Todos!,
gritaram. Por esta nossa terra contra as hostes de Castela: Portugal e S.
Jorge! Ide agora repousar, meus filhos, disse-lhes paternalmente Álvaro Pais,
na sua voz tremente de velho. Ao romper da manhã seremos uns com os outros e o
dia há-de ser de bravia luta. Mas até eu, com as minhas pernas trôpegas, me hei
de arrastar para onde for preciso para que a soldadesca de Castela veja como os
velhos de Lisboa são capazes de morrer pela sua terra. Pai do povo sois vós,
disse uma regatona velha da Ribeira conhecida entre o povo por Tia Lourença
da Ribeira, que reunia à sua volta um grupo de mulheres mais novas, e aqui
tendes quem vos ajude a ir ver como esse bailado de amanhã há-de ser. Falta o
pão na cidade, mas ainda, louvores a Deus, não faltam as pedras para britar os
focinhos a esses cães danados de Castela! Ide repousar, meus filhos, repetiu o
alquebrado chanceler dos tempos de Fernando I. Muito há que dispor para o dia
de amanhã, e a todas as coisas precisa de prover a sua graça, disse indicando o
Mestre. Ide com Deus. Até ao amanhecer, acudiu dom João num gesto amigável de
despedida. E foi andando para cima, ao lado de Álvaro Pais e do douto João das
Regras.
Viva
o Mestre! Viva o nosso Messias!, aclamou a multidão num arrebatamento de
entusiasmo, como se estivesse esquecida de todas as privações, de todas as
misérias e de quantos perigos enormes podia trazer-lhe o dia seguinte. Vamos
ter pão, mulheres de Deus!, disse a regatona da Ribeira. Virá trigo na armada
do Porto. Vai acabar a fome! Destacando-se do adro da Sé, numa aparição como a
de um fantasma, nos braços a criancita morta, a pobre mãe enlouquecida, disse
em gritos agudos como uivos: acabar a fome!... Também a minha filha... Acabou!
Tantas mulheres! E não houve nenhuma... Nenhuma... Que lhe matasse a fome... A
ela!... Olhai... Morreu! Uma profunda impressão de estranheza e de
supersticioso pavor oprimiu a multidão, e com mais profunda violência o coração
das mulheres. Recuaram, cheias de terror como se aquela desventurada fosse um
espectro fugido de alguma campa da Sé». In António Campos Júnior, A Ala dos
Namorados, 1905, Luso Livros, 2013.
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