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«(…) Por isso, entendeu que o
melhor remédio seria o de voltar para Coimbra tão depressa quanto possível,
evitando até, se ainda fosse a tempo, encontrar-se com o morgado de Pombeiro,
cujo regresso a casa estava previsto para esse mesmo dia. Acrescia a tamanha
inquietação o episódio do sonho em que, horas antes, se viu envenenado por
Briolanja Mendes. E disso tinha medo. E por isso se assustou também quando, ao
chegar à cozinha, viu a velha Briolanja, acompanhada pela sua dama, a preparar
o jantar. Bom dia, senhora, cumprimentou, perturbado, com o queixo a tremer e a
voz gaguejante. Bom dia, correspondeu ela, serena, descontraída, quase perfeita
na atitude e no aspecto. Visivelmente atrapalhado, Vicente Esteves mal
conseguiu olhar para Leonor quando ali mesmo reafirmou a intenção de voltar
rapidamente a Coimbra, bastando para tanto que a jovem dama lhe destinasse a companhia
de um grupo de homens de sua confiança. Para ele, àquela hora, mais terrível do
que o pânico dos assaltos eram a desconfiança do papel de Briolanja, despertado
pelo maldito sonho, e o medo a João Lourenço Cunha no caso de este vir a saber
da vergonhosa insídia.
Com a autoridade que lhe conferia
o estatuto de sobrinha do conde de Barcelos e de senhora do morgado de
Pombeiro, Leonor Teles prometeu providenciar para que nessa tarde ainda ou, na
pior das hipóteses, no dia seguinte alguém levasse o lente à cidade onde nasceu
sua alteza el-rei Fernando I. E depois de lamentar as circunstâncias que
determinavam a antecipação do regresso dele a Coimbra, Leonor Teles não perdeu
tempo a convidá-lo em seu nome e em nome do marido para usar da casa sempre que
se quisesse recolher. Não sei se sou merecedor da sua estimada atenção,
senhora. O senhor é merecedor dela, como o é também do bom jantar que os criados
e a minha ama estão a preparar para nós. Ao ouvir as últimas palavras, Vicente
Esteves não conseguiu evitar, ou sequer disfarçar, um estremeção que por pouco
o abalava. O próprio comportamento de Leonor, cerimonioso e frio, começava a
despertar nele um estranho sentimento de desconforto, chegando a levá-lo à
dúvida sobre se a dama e a sua ama não estariam cumpliciadas para o envenenar.
Agradeço a sua elevada atenção,
senhora, mas não me apetece jantar. Subitamente, Leonor Teles lembrou-se de o
homem lhe ter contado o sonho em que se via envenenado pela velha, pelo que a
sua recusa em comer era decerto mais por ter medo do que por não ter fome. Ao
dar-se conta disso e ao ver o lente a tremular, a jovem convidou-o a ir com ela
à sala para uma conversa reservada. Senhor lente Vicente!, começou o fraseado,
antes de lhe pedir para se sentar num banco a curta distância do seu. Eu sei
que está com medo de muitos assuntos, e tal se pode ver pelo seu rosto e pelo
seu jeito, mas rogo-lhe que não tenha nenhum receio. Se alguma vez vier a ser
envenenado, e Deus Nosso Senhor queira que não, nunca o será na minha casa nem por
iniciativa da minha ama, em quem deposito a maior confiança. Quero crer que
agora tenha outros temores para além deste, porque eu também os tenho, mas
gostaria que de nada receasse, quanto mais não seja em homenagem à noite de glória
a que ambos nos entregámos e nos soubemos dar.
De olhos postos nas mãos cruzadas
sobre o colo, o professor ia ouvindo atentamente aquelas palavras sem nunca
fitar Leonor, excepção feita ao momento em que ela pronunciou a frase de
glorificação à noite de luxo que lhes aconteceu. Só nessa altura levantou a
cabeça e soube sorrir com amável alegria e discrição. Sabe, o que se passou
entre nós só foi possível por eu não ter do meu esposo a atenção que julgo
merecer e que o senhor Vicente Esteves me confiou. Tenho pena que se vá embora.
Fazendo uma pausa, acrescentou: mas, pensando bem, talvez seja preferível para
mim a dor da falta que me vai fazer à tímida alegria da sua continuada presença
aqui. Juntos, com o meu esposo nesta casa, dificilmente saberíamos lidar com o
caso. Cada vez mais nervoso e inquieto, emocionado já, Vicente Esteves voltou a
olhar para a dama, abanando então a cabeça em sinal de concordância.
Quanto ao seu medo à comida,
continuou, peço-lhe também que não o tenha, porque eu própria me encarregarei
de colocar nas bacias da cozedura umas alfaias bastante eficazes. Tenho ali uns
chifres de unicórnio, ágatas e a pedra serpentina que, como sabe, nos mostrarão
se a comida tem ou não veneno. E, sorridente, acrescentou: só desejo que depois
do jantar vá com Deus, meu estimado amigo, e que Ele o ajude e o proteja». In
José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN
978-989-555-113-2.
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