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«(…) Porque não vos pondes do meu lado? Sois tão cego que não
vedes que todos estes meus esforços acabarão por vos favorecer a vós, o meu
herdeiro? Alargando os meus domínios, aumento a vossa própria herança. Essa
vossa estratégia lisonjeadora talvez funcionasse com vossa irmã. Mas não
comigo! Julgais que Fernão Peres me deixaria o caminho livre, caso morrêsseis
antes dele? Dona Teresa não respondeu logo e empalideceu ainda mais. Acabou por
dizer: é claro que deixarei em testamento... Afonso interrompeu-a, furioso: e
julgais que intimidais a trupe de vosso amante com um pedaço de pergaminho? Eu
prefiro a força da espada, a única língua que eles entendem! Dona Teresa
fulminou-o com o olhar: dizei finalmente o que quereis! Qual o verdadeiro
motivo para exigirdes esta conversa a sós? Afonso esforçou-se por soar
despreocupado: pretendo dar-vos uma oportunidade. Só podeis estar, ou do meu lado, ou do lado de Fernão
Peres. Teresa encarou-o com um divertimento desdenhoso, como um adulto olha
para uma criança que disse um disparate: ouvi bem?
Ela insistia naquele seu jeito distante e frio, mostrando
desprezo pelos desejos dele. O que o punha vulnerável. Afonso sentia-se a lutar
contra o desequilíbrio, como um acrobata em cima de uma corda a dez pés de
altura. Exijo que vos separeis dele! Indiferente ao esforço que esta frase lhe
custara, sua mãe soava mais divertida do que nunca: vós exigis? Com que
direito? Sou o vosso único filho varão. Afonso perdeu as estribeiras, berrou: posso
exigir-vos seja o que for! Ela manteve-se calada, limitava-se a fixá-lo,
trocista. O príncipe insistiu: aguardo a vossa resposta. Sim ou não? Não! A
palavra soou fria como o ferro e clara como a água. Afonso lutava agora contra
a vontade de desatar em pranto. Porque é que sua mãe continuava a ignorá-lo?
Enxotava-o de si, como o fazia, tinha ele quatro anos. Virou-lhe as costas.
Chegada ao seu aposento, dona Teresa livrou-se brusca das aias
que a rodeavam e sentou-se à lareira, esgotada e com falta de ar. Mas já
acalmara, quando Fernão Peres surgiu, cínico: Então? Correu bem a prosa entre
mãe e filho? Teresa levantou-se e apoiou-se no friso da lareira, observando as
chamas. Ao sentir o calor nas faces, recuperou alguma força. Como se o seu
espírito e o seu corpo se recusassem a ficar no fundo do poço, escalando, num
último esforço, as paredes húmidas e escorregadias. Iria com a sua luta até ao
fim. Vou marcar mais um encontro com o meu sobrinho, em Zamora. Fernão
quedou-se em silêncio por longos momentos,
até perguntar: pensas que o podes pôr do teu lado, depois de tudo o que se
passou? Tentarei convencê-lo de que o primo cometeu traição. Traição? Em
relação a quem? A mim, à rainha!
Afonso vem exercendo o poder no condado sem me ter tida nem achada. Depois de
uma curta reflexão, Fernão Peres remoeu, entredentes: um argumento
mal-amanhado... E que faremos depois? Se mais nada nos restar, apelaremos à
luta e atacaremos Afonso, em Guimarães! Teremos alguma hipótese de vitória? Não
sei. Mas jogaremos a nossa última cartada.
Naquele dia de São João Baptista, do ano 1128 do nascimento
de Cristo, Afonso assistia à missa na igreja de São Miguel do castelo, em
Guimarães, na companhia dos barões do
norte, que haviam respondido ao seu apelo. Preparavam-se para enfrentar as
hostes de dona Teresa. Depois de um encontro com Afonso VII, em Zamora, que não
dera em nada, a rainha
juntara cerca de trezentos guerreiros, entre cavaleiros de Coimbra, Porto e
Baião e as hostes galegas de Fernão Peres e de Gomes Nunes.
Afonso tinha, do seu lado, a fina-flor de Entre Douro e
Minho: os três irmãos Moniz, com os dois filhos mais velhos de Egas; Soeiro
Mendes Grosso Sousa, com os irmãos Gonçalo e Garcia; Paio
Soares Maia, sobrinho do arcebispo de Braga; as hostes galegas do conde Afonso
Nunes Celanova, que assim se juntava ao irmão Sancho Nunes; até o conde de
Límia, Rodrigo Peres Veloso, outro nobre galego, se passara para o lado do
príncipe e trouxera consigo o irmão bastardo do próprio Fernão Peres. Seguindo
um costume da época, o conde Pedro Froilaz Trava dera àquele filho ilegítimo o
nome do seu primogénito. E, da fidelidade deste segundo Fernão Peres, a quem
chamavam o Cativo,
Afonso não duvidava, pois o galego tudo faria para afrontar o seu meio-irmão,
herdeiro do pai. O infante contava ainda com o apoio de Fernando Mendes
Bragança, uma surpresa de última hora. A fronteira entre o condado Portucalense
e o reino de Leão corria mal definida, nas terras rudes de Bragança, cujas
gentes sentiam mais afinidades com as populações à roda de Astorga e Zamora, do
que com as de Entre Douro e Minho». In
Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
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